102 anos de Darcy Ribeiro: do socialismo aos Cieps

Aos 102 anos de nascimento de Darcy Ribeiro, conheça a trajetória e pensamento pós-1964 deste intelectual brasileiro
102-anos-de-darcy-ribeiro-darcy-ribeiro-durante-exilio-no-chile-foto-fernando-rabelo-fundacao-darcy-ribeiro-tvt-news
Darcy Ribeiro durante exílio no Chile. Foto: Fernando Rabêlo/Fundação Darcy Ribeiro

26 de outubro marca os 102 anos de nascimento de Darcy Ribeiro. Para marcar a data, a TVT News traz artigo do historiador Demetrius Ricco Ávila, com destaque para a trajetória e pensamento pós-1964 deste este importante intelectual e político brasileiro que contribuiu para a antropologia, para a educação, para a literatura e para os debates sobre a formação do Brasil e da América Latina

Quem é Darcy Ribeiro

Antropólogo de renome internacional, indigenista e legatário das lutas de Cândido Rondon, educador e discípulo de Anísio Teixeira, político vocacionado para refazer o Brasil, romancista e imortal da Academia Brasileira de Letras. Tantas são as atribuições de Darcy Ribeiro que resultam na quase impossibilidade de se resumir neste pequeno texto sua vida multifacetada, caleidoscópica, tal como suas inúmeras realizações em diferentes campos. Vida esta que começa em Montes Claros (MG), em 26 de outubro de 1922 – o “ano de mim”, como diria Darcy, espirituosamente, em seu livro Aos Trancos e Barrancos (1985); ano fundamental para a compreensão da história do Brasil, marcado pela Semana de Arte Moderna, pela fundação do Partido Comunista Brasileiro, pela revolta dos 18 do Forte de Copacabana, com o consequente  início do tenentismo, dentre outros eventos que, desdobrando-se, fizeram da década de 1920 um período efervescente no país, nos planos social, político, econômico ou cultural. 

Darcy Ribeiro: o antropólogo e político

A quase impossibilidade do resumo obrigará a um salto no tempo para conferir relevo a alguns aspectos da trajetória e do pensamento de Darcy Ribeiro, situando o texto em 1964 e daí em diante. Não sem antes indicar, todavia, que este salto se dá sobre a formação de Darcy Ribeiro em Ciências Sociais em São Paulo (tendo colegas como Florestan Fernandes e Antônio Cândido e integrando junto a eles a primeira geração de cientistas sociais com formação profissional realizada no Brasil), entre 1943 e 1946, seguida de um decênio de serviços como etnólogo no antigo Serviço de Proteção aos Índios (SPI, órgão criado por Rondon em 1910 e conhecido como FUNAI nos dias atuais), das primeiras publicações de trabalhos sobre povos indígenas como os kadiwéu do Pantanal e os kaapor da Amazônia, que o colocariam na cena intelectual brasileira, e, finalmente, do vínculo formado com Anísio Teixeira na segunda metade dos anos 1950 e sua atuação na elaboração de pesquisas e políticas educacionais junto a este no Inep, e na criação da Universidade de Brasília (UnB), sendo seu primeiro reitor.

Vale ressaltar que a atuação de Darcy Ribeiro no Inep, tornando-o ferrenho defensor da educação pública, estatal, laica e gratuita, coloca-o em rota de colisão com adeptos do privatismo na educação brasileira, mormente “o corvo” Carlos Lacerda, então deputado federal pela UDN. Uma polêmica com Lacerda em 1959, além de ensejar um Manifesto dos Educadores à semelhança do que Anísio encabeçara em 1932, catapulta Darcy para a política partidária, nos quadros do antigo PTB. Note-se que Darcy Ribeiro, estudante de Ciências Sociais em São Paulo nos anos 1940, fora militante de um PCB então posto na clandestinidade pelo Estado Novo de Getúlio Vargas. Curiosamente, agora dava os passos necessários para tornar-se um dos bastiões do trabalhismo brasileiro em seu pendor nacionalista e reformista. 

Darcy Ribeiro no exílio

Eis que se chega a 1964. Darcy Ribeiro, que em 1962 estivera à frente do Ministério da Educação, às vésperas do golpe militar que apearia João Goulart do poder fazia as vezes de seu chefe da Casa Civil, tendo por tarefa coordenar o malfadado programa das Reformas de Base propugnadas por aquele presidente. Entre 31 de março e 1º de abril, consuma-se o golpe e a opção de Goulart por não opor resistência aos que lhe usurparam o comando do país. Sobrevém o Ato Institucional n.º 1, contendo uma primeira lista de cassações de mandatos e direitos políticos, na qual o nome de Darcy figura juntamente com os de Goulart, Leonel Brizola e mais uma centena de políticos. Aos três diretamente mencionados, cabe o destino comum do exílio no Uruguai. 

No caso de Darcy Ribeiro, o período de exílio dura um total de doze anos e se caracteriza pela fecundidade intelectual e por novas experiências no plano político. A fecundidade intelectual, em termos de produção teórica, se observa especialmente nos primeiros quatro anos desse período, tempo vivido em Montevidéu. Seu renome como etnólogo e indigenista e o saldo das suas experiências concernentes à criação da UnB já haviam evadido as fronteiras do Brasil.

Por isso, ao desembarcar na capital uruguaia, Darcy é convidado a lecionar Antropologia na Universidade da República, instituindo, ademais, esta cátedra até então inexistente na formação universitária do país vizinho. Mas, a despeito das benesses advindas do reconhecimento como intelectual, consubstanciadas na nova inserção profissional, os efeitos do golpe militar no Brasil se fazem sentir, em Darcy Ribeiro, na forma de uma indagação obsessiva sobre as causas do fracasso de um governo que intentara corrigir as mazelas do país pela via reformista.

No exílio, Darcy Ribeiro inicia nova fase do pensamento político

Em decorrência de tal indagação, Darcy se põe a redigir um livro de interpretação do Brasil, o qual chegaria a ser publicado no Uruguai sob o título Propuestas acerca del subdesarrollo: Brasil como problema (1969). Porém (em que pese ser este livro uma espécie de protótipo de O Povo Brasileiro, obra-prima de Darcy Ribeiro e que viria a lume somente em 1995), o livro não o satisfaz enquanto explicação do subdesenvolvimento brasileiro.

Quando se mira a década de 1960, na esteira das elaborações teóricas da CEPAL (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe, estabelecida pela ONU em 1948) e dos teóricos da dependência (a Teoria Marxista da Dependência engendrou-se na UnB, sob o reitorado de Darcy, que agregou seus futuros elaboradores ao corpo docente daquela instituição, a exemplo de Theotônio dos Santos, Vânia Bambirra e Andre Gunder Frank), é preciso reparar na voga de termos como “subdesenvolvimento”, “atraso”, “dependência” e, ainda,  “centro” e “periferia” do capitalismo mundial, daí advindo o subdesarrollo tematizado por Darcy Ribeiro em seu livro. 

Ocorre que Darcy Ribeiro fez a opção por vivenciar seu período de exílio na América Latina, chegando a recusar – por coerência ideológica e, no limite, ética – um convite para viver e trabalhar em Washington. Após quatro anos no Uruguai, Darcy faz uma má leitura dos acontecimentos no Brasil, entusiasmando-se com as notícias sobre a Passeata dos Cem Mil e outras manifestações da sociedade em contrário à permanência dos militares no poder. Supondo que a ditadura arrefecia, retorna ao Brasil em 1968, quando, em verdade, a repressão chegava ao seu auge – exemplificado no Ato Institucional n.º 5 -,  e é preso.

Decorridos alguns meses de cárcere em quarteis do Exército e da Marinha, é julgado e absolvido e deixa novamente o Brasil, dessa vez em direção à Venezuela. Em Caracas, trabalha na Universidade Central, até que, em 1970, muda-se para o Chile e se torna assessor não oficializado do recém-eleito presidente Salvador Allende. Pouco tempo antes do golpe militar liderado pelo general Augusto Pinochet, que derruba (e assassina) Allende, em 11 de setembro de 1973, Darcy Ribeiro havia recebido convite para assessorar o governo do então presidente do Peru, general Velasco Alvarado, na efetivação de um programa de reformas sociais naquele país.

Essa verdadeira diáspora pela América Latina fez ratificar aquilo de que desde o exílio uruguaio Darcy Ribeiro se apercebera: esclarecer as causas do subdesenvolvimento, com vistas a derrogá-lo, necessita de explicações tão amplas quanto profundas, não sendo suficientes, portanto, interpretações do país focalizando causalidades endógenas. Nessa direção, Darcy renega seu Propuestas acerca del subdesarrollo e passa reconstituir a história do mundo nos últimos dez mil anos, um esforço que resulta no livro O Processo Civilizatório (1968), o qual inaugura sua chamada série de Estudos de Antropologia da Civilização, composta, ainda, por As Américas e a Civilização, O Dilema da América Latina, Os Índios e a Civilização e, finalmente, Os Brasileiros: Teoria do Brasil. Compreender a história do mundo para que o Brasil se torne inteligível, do global ao continental, do continental ao subcontinental e do subcontinental ao nacional, em perspectiva não eurocêntrica, é o objetivo da série. Prefaciando o livro inaugural, Anísio Teixeira assevera que Darcy Ribeiro é a “inteligência mais autônoma do Terceiro Mundo”.

O pensamento político de Darcy Ribeiro

O Processo Civilizatório é de fato obra de uma inteligência autônoma, marxista e não ortodoxa. Adotando um evolucionismo multilinear e tomando de Karl Marx o conceito de “formações” econômicas e sociais, Darcy ousa confrontar, apontando dissimetrias, os Grundrisse de Marx e A Origem da Família, da Propriedade e do Estado, de Engels, além de adotar as “revoluções tecnológicas” como o dínamo da história. Destarte, e criando um vocabulário conceitual próprio, logra explicar, com uma teoria de “alto alcance histórico”, desde o ocaso de antigos impérios, passando pela expansão europeia no alvorecer da modernidade e chegando ao predomínio das multinacionais na agudização do subdesenvolvimento de países surgidos como formações coloniais e que, mesmo após tornarem-se politicamente independentes, foram e são mantidos em desvantagem no cenário internacional. Marxista, Darcy Ribeiro não vislumbra senão no socialismo a superação dos entraves ao pleno desenvolvimento das potencialidades brasileiras, latino-americanas, terceiro-mundistas. 

Nos anos que antecederam o golpe militar no Brasil, era tema recorrente a “revolução brasileira” e os possíveis caminhos para consumá-la. De Nélson Werneck Sodré a Moniz Bandeira, datam diversas bibliografias daquele período acerca de nossa possível (ou, segundo alguns, improvável) revolução. Mais tarde, desfeitas pelo golpe ilusões como a da existência de uma suposta burguesia nacional revolucionária e vanguardista, interessada em emancipar o Brasil do jugo estrangeiro, Darcy Ribeiro apresenta em O Processo Civilizatório as vias para se alcançar o socialismo, quais sejam, (i) a revolucionária, tendo Rússia e China como paradigmas, (ii) a evolutiva, tomando como exemplos a Inglaterra e os países escandinavos e, por fim, (iii) a via do que denomina por nacionalismo modernizador, típico do Egito de Gamal Nasser ou do Peru de Velasco Alvarado à época.

Descrevendo essas vias possíveis para o socialismo ainda em 1968, Darcy argumenta que a via evolutiva somente se pode processar nos países em que as forças produtivas do capitalismo tenham atingido o ápice, o que tornaria o socialismo de tipo evolutivo inviável para os países do Terceiro Mundo.

Entretanto, dois anos depois, Darcy Ribeiro se estabelece no Chile governado por Salvador Allende, trabalhando junto àquele governo. É este o ponto em que a fecundidade intelectual do seu exílio se entrelaça com suas novas experiências no plano político, a práxis incidindo sobre a teoria e obrigando-a a se rever e revisar. Nesse país latino-americano, a vitória eleitoral de Allende faz emergir a primeira experiência socialista assentada em bases democráticas de que se tem notícia.

Apesar de brutalmente suprimida pelo golpe militar de 1973, a experiência chilena descortinou aos olhos de Darcy a possibilidade de um país terceiro-mundista, latino-americano, rumar em direção ao socialismo pela via evolutiva. De Lima, Peru, após receber a infausta notícia da derrubada do governo de Salvador Allende, e do aniquilamento físico do presidente mesmo, Darcy Ribeiro redige um texto contundente, intitulado Salvador Allende e a esquerda desvairada, no qual sustém que sequer a esquerda do Chile, notadamente os comunistas, foi capaz de compreender a grandeza daquela experiência sui generis em se tratando de um país subdesenvolvido. 

Darcy Ribeiro e a educação

102-anos-de-darcy-ribeiro-darcy-ribeiro-foi-o-idealizador-dos-cieps-ensino-em-periodo-integral-foto-fundacao-darcy-ribeiro-tvt-news
Darcy Ribeiro foi o idealizador dos Cieps: ensino em período integral. Foto: Fundação Darcy Ribeiro

De volta ao Brasil em 1976, no contexto da abertura política Darcy Ribeiro se empenha na reconstrução do antigo PTB, que, do mesmo modo que outros partidos, fora extinto pelo Ato Institucional n.° 2 da ditadura militar brasileira. Unindo-se a Leonel Brizola e a outras lideranças políticas que, anistiadas, regressaram ao Brasil, Darcy é um dos fundadores e principal ideólogo do PDT. Concorrendo ao governo do Rio de Janeiro nas eleições de 1982 como vice de Brizola, afirma, junto com este, que seu partido intenta a consecução de um “socialismo moreno” no país.

A chapa pedetista sai vitoriosa do pleito e, nos anos subsequentes, realizações como os Centros Integrados de Educação Pública (Cieps), construídos às centenas no Estado do Rio, e o Sambódromo da Marquês de Sapucaí, bem podem ser ilustrativas dos passos no caminho para um socialismo evolutivo, democrático, “moreno” e brasileiro: divergindo das concepções anglófilas de Anísio Teixeira, para Darcy Ribeiro o horizonte educacional dos Cieps não poderia ser o das sociedades liberais do Hemisfério Norte, em seus padrões de individualismo e competição social derramados por sobre o Terceiro Mundo. Longe de ser um fim em si mesma, e ao revés do formalismo canônico das instituições elitistas e tradicionais, uma escola de qualidade estendida à totalidade do povo de um país subdesenvolvido é um instrumento imprescindível para a emancipação nacional. 

Por Demetrius Ricco Ávila
Imagens: Acervo Fundação Darcy Ribeiro (Fundar)

Sobre o autor

Demetrius Ricco Ávila, graduado em Ciências Sociais (UFRGS), mestre em História (PUCRS), doutorando em História (PUCRS), Professor do Instituto Federal Sul-rio-grandense e Secretário de Formação Política do Movimento Cultural Darcy Ribeiro (MCDR)/PDT-RS. Autor do livro Eneida Tropical: O Povo Brasileiro como grande narrativa sobre o Brasil (Class, 2019)

Assuntos Relacionados