2 de julho e as heroínas: Maria Felipa, Maria Quitéria e Joana Angélica

Mulheres baianas foram protagonistas na luta pela independência na Bahia, enfrentando o poder português
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As três heroínas atuaram, cada uma à sua maneira, nos campos de batalha e na linha de frente da resistência. Foto: Divulgação/PT

Celebrado como o verdadeiro marco da Independência do Brasil na Bahia, o 2 de Julho de 1823 vai além do simbolismo militar. A data celebra a luta popular contra o domínio português e revela personagens até hoje pouco valorizadas na história oficial, especialmente mulheres negras, indígenas e brancas que enfrentaram o poder colonial. Entre elas, destacam-se Maria Felipa de Oliveira, Maria Quitéria de Jesus e Joana Angélica, cujas trajetórias sintetizam o protagonismo feminino na consolidação da independência no Brasil.

A chamada “Independência da Bahia” foi decisiva para garantir a efetivação do rompimento com Portugal, proclamado por Dom Pedro em 7 de setembro de 1822, mas ainda instável em várias regiões do país. A resistência portuguesa em Salvador e em outras localidades baianas mobilizou o povo em torno da causa libertadora. Foi nessa conjuntura que as três heroínas atuaram, cada uma à sua maneira, nos campos de batalha e na linha de frente da resistência.

Maria Felipa de Oliveira: a líder negra que derrotava os portugueses com táticas do povo

Pouco mencionada nos livros escolares por muito tempo, Maria Felipa foi uma mulher negra, provavelmente descendente de escravizados, nascida e criada na Ilha de Itaparica. Trabalhadora das marés — marisqueira, pescadora, lavadeira —, ela se tornou referência da luta pela independência ao liderar um grupo de mulheres que sabotava e expulsava tropas portuguesas na região da Baía de Todos-os-Santos.

Com ações organizadas em um contexto de guerra não convencional, Maria Felipa e seu grupo atacavam soldados inimigos e incendiavam embarcações coloniais. Usavam galhos de cansanção — planta que causa queimaduras e intensa ardência na pele — para afugentar os soldados, além de artifícios como emboscadas e armadilhas nos manguezais. Os registros sobre suas ações, embora escassos e fragmentários, foram transmitidos principalmente pela tradição oral e por relatos posteriores de cronistas locais.

O historiador baiano Ubiratan Castro de Araújo destaca “sua participação na luta pela independência da Bahia foi bastante ativa, não se limitando a discursos inflamados, suas armas, no entanto, foram a inteligência, a coragem e a solidariedade”. Em uma época em que mulheres negras sequer eram consideradas cidadãs, Maria Felipa mostrou que a defesa da pátria também era missão do povo oprimido.

A historiadora Lilia Schwarcz observa que embora os registros documentais sobre Maria Felipa sejam escassos, suas ações têm forte presença na memória coletiva: “E ela parece que reuniu um grupo de 200 mulheres que atraíram o exército português e combateram o exército com base na cansanção, que é uma planta que gera muita coceira. Ou seja, ela era negra, era escravizada e sumiu das nossas páginas”. Hoje, ela é considerada por movimentos negros e feministas como uma figura emblemática da luta anticolonial.

Maria Quitéria de Jesus: a mulher-soldado que entrou para o Exército e a História

Enquanto Maria Felipa enfrentava os portugueses com táticas populares, Maria Quitéria empunhava armas como soldado do Exército. Nascida em Feira de Santana, interior da Bahia, Maria Quitéria foi criada em uma família rural e teve pouca ou nenhuma instrução formal. Em 1822, contrariando o pai e as normas sociais da época, vestiu-se com roupas masculinas, cortou o cabelo, assumiu o nome “soldado Medeiros” e se alistou nas tropas que lutavam contra os portugueses no Recôncavo baiano.

Logo se destacou pela pontaria, bravura e disciplina. Ao ser descoberta, foi defendida por seus companheiros de farda, tamanha era sua contribuição nos combates. Foi incorporada oficialmente às tropas e condecorada por Dom Pedro I com a Imperial Ordem do Cruzeiro. Seu retrato com uniforme e espada, pintado por Domenico Failutti em 1920, tornou-se símbolo do heroísmo feminino na história militar brasileira.

Para a historiadora Mary del Priore, Maria Quitéria “rompeu com os limites de gênero de sua época ao assumir um papel tipicamente masculino em plena guerra. Sua figura é representativa de uma mulher que ousou ser diferente e pagou o preço com o anonimato posterior” (Histórias da Gente Brasileira, Leya, 2017).

Apesar de sua trajetória notável, Maria Quitéria foi pouco lembrada ao longo do século XIX. Só no início do século XX passou a ser recuperada como figura simbólica da “mulher patriota”. Ainda assim, sua história real — de uma jovem do interior, sem privilégios, que se destacou por mérito próprio — é bem mais complexa do que a imagem romantizada da soldada da pátria.

Joana Angélica de Jesus: o sacrifício da freira que enfrentou as baionetas portuguesas

Joana Angélica de Jesus: a religiosa que se tornou mártir da resistência baiana

Joana Angélica, abadessa do Convento da Lapa em Salvador, é uma das figuras femininas mais emblemáticas da luta pela Independência da Bahia. Em 19 de fevereiro de 1822, ela impediu a entrada das tropas portuguesas no convento, sendo morta ao tentar barrar a invasão com seu próprio corpo. Seu ato de resistência se tornou símbolo de coragem e sacrifício em defesa da comunidade e da liberdade.

A historiadora Maria da Glória de Oliveira destaca o apagamento histórico que essas mulheres sofreram, ressaltando que “o sumiço de seus nomes nos relatos deste episódio é resultado justamente da lógica machista de um tempo em que a atuação delas era omitida dos registros, somado a uma historiografia que as ignorava.”

Essa reflexão evidencia como Joana Angélica, embora símbolo da resistência, teve sua história minimizada por uma historiografia tradicional que negligenciou o protagonismo feminino na construção da independência nacional. Seu legado, contudo, permanece vivo como inspiração da luta das mulheres baianas contra o colonialismo.

O protagonismo das mulheres na Independência do Brasil, especialmente na Bahia, ainda é um campo em processo de reconhecimento e valorização. Por muito tempo, suas histórias foram reduzidas a notas de rodapé ou romantizadas como “exceções” à norma masculina. Hoje, graças a pesquisas acadêmicas e ao esforço de movimentos sociais, Maria Felipa, Maria Quitéria e Joana Angélica começam a ocupar o lugar de direito como protagonistas da história nacional.

O 2 de Julho é, assim, muito mais do que uma data regional. É uma celebração da luta popular pela liberdade e da força das mulheres que, com armas, palavras ou galhos de cansanção, disseram não à opressão portuguesa e inscreveram seus nomes na construção de um país soberano.

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