O que é decolonialismo?

Conceito nasce das lutas sociais de povos que sofreram colonização e é incorporado em práticas artísticas, pedagógicas, comunicacionais e nas pesquisas acadêmicas
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Monumento “Mão”, de Oscar Niemeyer: a integração latino-americana é um sonho cultivado desde o século XIX| Crédito: Margarida Quintal/Memorial da América Latina

Por Alexandre Barbosa **

O termo decolonialismo — ou decolonialidade — significa o conjunto de práticas, conceitos, pesquisas e estudos que tentam diminuir, e até reverter, os efeitos da colonização nas sociedades em que este processo histórico ocorreu. 

Decolonialismo é diferente de descolonização. Enquanto a descolonização se refere às lutas das colônias africanas, asiáticas e latino-americanas para se tornarem independentes das respectivas metrópoles, o decolonialismo tem como princípio que a independência política não acabou com instituições, hábitos e práticas coloniais.

A partir dos estudos decoloniais entende-se que, mesmo após a independência política, as nações continuam sofrendo com as feridas provocadas pelos séculos de colonialismo, como:

  • machismo;
  • racismo;
  • clientelismo (acesso aos bens e proteção do Estado apenas para privilegiados políticos);
  • uso da violência como método de resolução de conflitos e aplicação do aparato repressivo contra as populações mais pobres e não-brancas;
  • a permanência de latifúndios (ou resistência a implantar reforma agrária);
  • dependência econômica: os países estão posicionados na engrenagem econômica internacional como nações primário-exportadoras e importadoras de bens com valor agregado. Ou seja exportam produtos agropecuários e minerais e são importadores de itens industrializados com maior tecnologia;
  • dependências cultural e acadêmica: apesar da rica cultura popular autóctone, a colonização mantém a lógica da valorização das culturas dos países centrais do capitalismo, principalmente europeus e norte-americanos e menosprezo e preconceito com a cultura local. 

Portanto, dizer que uma prática ou estudo é decolonial significa se posicionar – e também atuar – em oposição a essas feridas coloniais:

  • promover práticas antirracistas e combater o machismo e o racismo em todas as estruturas — da linguagem aos centros de poder; 
  • lutar por políticas públicas que promovam a inclusão de todos os setores da sociedade; 
  • promover políticas públicas que revertam o uso da violência como coerção e resolução de conflitos; 
  • defender a reforma agrária, o uso adequado dos espaços urbanos, a preservação ambiental e dos povos originários e quilombolas; 
  • defender ações de emancipação econômica para além da economia primário-exportadora, sempre respeitando a sustentabilidade; 
  • lutar pela valorização da cultura popular, lembrando que essas manifestações são sempre vivas e, nessa categoria, estão incluídas tanto a cultura ligada às tradições populares quanto as que surgem nos centros urbanos.

Importante notar que essas pautas são históricas das lutas sociais da América Latina, Ásia e África desde o século XIX. O que comprova que o decolonialismo não é um modismo pensado na academia, mas a sistematização de lutas centenárias das classes populares e dos povos que passaram pelos crimes cometidos durante a colonização, como a escravidão e a repressão às tentativas de emancipação.

A partir dessa visão de reverter as dependências cultural e acadêmica, os estudos decoloniais se expandiram para diferentes áreas do conhecimento com o objetivo de promover e apoiar ações que revertam a colonialidade do saber, ou seja, que apresentem outras referências artísticas, estéticas e acadêmicas para além das habituais referências européias e norte-americanas. 

Aqui, na América Latina, promover a decolonização do saber é a principal característica do decolonialismo: conceber um novo mundo além dos  limites impostos pelo colonialismo na Pedagogia, nas Ciências Sociais e nas Ciências Sociais Aplicadas, como o campo da comunicação. Como afirma a pesquisadora Catherine Walsh: decolonialismo é o “interesse em articular, desde a América Latina, projetos intelectuais e políticos que debatam pensamentos críticos com o objetivo de pensar fora dos limites definidos pelo colonialismo, e com o propósito de construir mundos e caminhos diferentes de pensar e de ser”.1

Decolonialismo na comunicação

Para compreender o que significa decolonizar a comunicação, faça os seguintes exercícios:

  • quantas referências bibliográficas de autoras e autores da América Latina constam nos programas de suas disciplinas?;
  • como está a diversidade étnica e de gênero entre as e os docentes dos cursos?;
  • como a América Latina é retratada nos meios de comunicação?

As respostas a essas perguntas vão demandar práticas e ações decoloniais. Decolonizar o saber e o fazer na comunicação, passa por:

  • incorporar referências bibliográficas (autoras, autores e escolas de pensamento) latino-americanas;
  • adotar critérios latino-americanos de seleção e construção de notícias;
  • promover ações comunicacionais que se identifiquem com a diversidade latino-americana, ou seja, práticas comunicacionais que gerem identidade com os povos originários, com os de matriz africana, que não reverberam o machismo ao também incluir as perspectivas femininas e LGBTQIA+.

Assim como as demais pautas, os ideais de decolonialismo nas artes e na comunicação estavam presentes há tempos na América Latina. Em 1935, por exemplo,  o uruguaio Joaquín Torres Garcia propõe a “Escuela del Sur” e sugere que a América Latina reverta sua dependência cultural das referências estéticas europeias e que passe a valorizar a arte indígena. Nas palavras de Torres García, ao inverter o mapa da América Latina, com a ponta voltada para cima, ele sugere que nosso norte, nossa bússola, passe a ser a América Latina.

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Ilustração do uruguaio Joaquín Torres Garcia que ilustra o artigo “Escuela del Sur”, de 1935, que propunha a inversão de referências: ao invés da Europa e EUA, seria a América Latina. | Crédito: Joaquín Torres Garcia

Assim como as demais pautas, os ideais de decolonialismo nas artes e na comunicação estavam presentes há tempos na América Latina. Em 1935, por exemplo,  o uruguaio Joaquín Torres Garcia propõe a “Escuela del Sur” e sugere que a América Latina reverta sua dependência cultural das referências estéticas europeias e que passe a valorizar a arte indígena. Nas palavras de Torres García, ao inverter o mapa da América Latina, com a ponta voltada para cima, ele sugere que nosso norte, nossa bússola, passe a ser a América Latina.

Referências

Apesar de terem ganhado força e sistematização nas pesquisas acadêmicas nas últimas décadas, o que hoje se entende por decolonialidade está presente nas ideias de autores latino-americanos desde o século XIX. A lista é tão grande quanto a diversidade latino-americana. Com o risco de ser injusta, como são as listas, mas para oferecer referências para leituras nos diversos campos do pensamento decolonial podem ser destacados:

O cubano José Martí (1853-1895), considerado um sucessor dos ideais de Simón Bolívar, entendia que a integração latino-americana era a resposta necessária ao que ele já enxergava como imperialismo norte-americano. 

Aimé Césaire (1913-2008), da Martinica, autor de Discurso sobre o colonialismo, uma das obras mais importantes para entender a relação entre colonialismo e racismo. Este livro inspirou os movimentos pan-africanos, os Panteras Negras e é citado várias vezes por Frantz Fanon.

Também nascido na Martinica, Frantz Fanon (1925-1961) é um dos principais intelectuais a explicar e também a lutar contra as consequências e mazelas do colonialismo. Fanon fez parte da Frente de Libertação Nacional da Argélia. O livro Os condenados da terra, que tem prefácio de Sartre, descreve, de maneira impressionante, como são os territórios marcados pelo colonialismo, seja na África, Ásia ou América Latina e mostra como racismo marca as vítimas.

O peruano Aníbal Quijano (1930-2018) é um dos mais conhecidos teóricos do decolonialismo, ao definir o termo “colonialidade do poder” que critica o eurocentrismo e valoriza a cultura do chamado “Sul Global”.

A brasileira Lélia Gonzalez (1935-1994), uma das mais importantes intelectuais brasileiras, cunhou o termo amefricanidade, referência dos estudos do feminismo negro na América Latina

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A brasileira Lélia Gonzalez | Crédito: Acervo Família Lélia Gonzalez

A argentina Rita Segato (1951) além de publicar diversas obras sobre feminismo e violência contra mulheres, tem várias ações nesta luta: é uma das co-autoras da  proposta de cotas para estudantes negros e indígenas na educação superior brasileira e foi perita no julgamento da Guatemala, no qual foram condenados integrantes do exército por delitos de escravidão sexual e doméstica contra mulheres maias da etnia g’egchi.

A norte-americana, radicada no Equador, Catherine Walsh (1964) é uma das mais citadas autoras da decolonialidade. Catherine Walsh atua há muitos anos nas lutas por justiça e transformação social, desde que trabalhou com Paulo Freire até a atual trajetória de apoio e engajamento em movimentos indígenas e afrodescendentes. Como é típico da intelectualidade latino-americana, além das críticas à colonialidade, ela também se dedica às práticas para decolonizar os saberes, principalmente na Pedagogia.  

O argentino Walter Mignolo (1941), uma das figuras centrais do decolonialismo, contribui muito para entender a América Latina com vários livros e artigos sobre colonialidade global e geopolítica do conhecimento.

** Alexandre Barbosa é editor do site TVT News, professor contratado do CJE-ECA-USP. Pós-doutor em Ciências da Comunicação (Unesp), Doutor em Comunicação (ECA-USP), Mestre em Jornalismo (ECA-USP), Especialista em Jornalismo Internacional (PUC-SP), Jornalista (Umesp). Autor do livro Por uma teoria latino-americana e decolonial do Jornalismo (Editora Frutificando, 2023). Artigo originalmente publicado no site da ECA-USP.

  1. WALSH, Catherine (org.). Pensamiento crítico y matriz (de)colonial: reflexiones latinoamericanas. Quito: Universidad Andina Simón Bolívar/ Ediciones Abya-Ayla, 2005, p.14-15 ↩︎

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