O Brasil tem 200 anos de constitucionalismo. Contudo, apenas há 36 anos – no dia 5 de outubro – o país ganhou a Constituição Cidadã. O documento encerrou de forma definitiva a ditadura civil-militar (1964-1985), além de inaugurar um período de direitos e garantias fundamentais ao exercício da plena cidadania. Naquele dia de outubro, presidida por Ulysses Guimarães, a Assembleia Nacional Constituinte promulgou o mais importante texto legal brasileiro após 21 anos de autoritarismo e ausência de segurança jurídica para a população.
Essa nova Constituição trouxe uma série de instrumentos de proteção ao país, além de direcionar o desenvolvimento nacional. Trata-se de um texto complexo, com 250 artigos divididos em 9 livros, ou títulos. Entre eles, dispositivos positivos e negativos. Ou seja, além de limitar o poder do Estado e garantir a liberdade dos cidadãos, a Constituição estabelece metas para o país. Logo em seu terceiro artigo, por exemplo, o documento seleciona quatro objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil.
Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
I – construir uma sociedade livre, justa e solidária;
II – garantir o desenvolvimento nacional;
III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;
IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
A Constituinte
Em 1985 o então presidente José Sarney convocou a Assembleia Nacional Constituinte, investida do chamado poder constituinte originário. O titular deste direito em uma democracia é o povo. Então, 559 parlamentares escolhidos por meio do voto direto trabalharam 20 meses para elaborar o texto da Constituição. Durante este período, houve intensa participação da sociedade civil em amplos debates. Durante cinco meses, cidadãos de todo o país enviaram 72.719 sugestões. Dos deputados constituintes, saíram 12 mil ideias.
“A voz do povo é a voz de Deus. Com Deus e com o povo venceremos, a serviço da Pátria, e o nome político da Pátria será uma Constituição que perpetue a unidade de sua Geografia, com a substância de sua História, a esperança de seu futuro e que exorcize a maldição da injustiça social”, disse Ulysses Guimarães em seu discurso no ato de promulgação da Constituição. “Liberdade, Soberania, Justiça. Sobre estas ideias simples construíram-se as maiores nações da história. Elas serão o âmago da nossa razão comum no trabalho de dotar a Nação de uma nova e legítima Carta Política”, completou.
Então foi Ulysses quem batizou a Carta Magna brasileira de “Constituição Cidadã”. “Poucas Constituições no mundo democrático têm essa presença direta e atuante da sociedade na elaboração dos preceitos de império em seu ordenamento jurídico. O Brasil será, assim, uma República representativa e participativa”, sentenciou o parlamentar.
A Constituição Cidadã
A Constituição brasileira possui algumas características fundamentais que a definem. Primeiramente, trata-se de uma constituição promulgada. Ou seja, fruto de um trabalho popular, democrático. Ela ainda é positiva, ou seja, exige condutas do Estado para garantir direitos da população, como o acesso à Educação, Saúde, Moradia e Alimentação.
Ainda é possível citar outras características centrais. Ela é rígida, pois possui um processo formal e complexo para sua alteração, além de conter clausulas pétras, que não podem ser alteradas. Apesar disso, parlamentares já alteraram seu texto 140 vezes.
Então, ela é dirigente, pois estabelece metas para o país. É analítica, pois trata de diversos assuntos e não apenas de matéria tipícamente constitucional. Do ponto de vista da ideologia, ela é eclética. Possui aspectos liberais (negativos) e sociais (positivos).
Direitos e garantias
“Não é apenas o problema importantíssimo e formal da reconstitucionalização do País, das garantias democráticas, da defesa dos direitos dos cidadãos, do respeito à liberdade e à dignidade humana, mas lutamos sobretudo contra esses grandes desníveis e essas desigualdades regionais e sociais”, deputado constituinte Chagas Rodrigues (PMDB)
Costuma-se falar no Direito que os direitos fundamentais possuem diferentes dimensões, ou gerações. A primeira nasce do pensamento iluminista burguês. Tratam-se de leis que limitam o poder do Estado sobre o cidadão, garantindo liberdade e impedindo eventuais abusos estatais. É natural de se imaginar o surgimento dessa corrente de direitos ao fim do absolutismo despótico europeu, onde a nobreza concentrava poder político e econômico.
Contudo, com a ascensão das classes burguesas e o estabelecimento do capitalismo como regime que regula o trabalho e a vida surgiram problemas. A liberdade dos donos dos meios de produção passou a significar liberdade para explorar. Com a industrialização, as condições de vida eram as piores possíveis. Jornadas de trabalho exaustivas, grávidas e crianças trabalhando com poucas horas de descanso e ainda assim passando fome. Então, com as revoltas socialistas surgem os direitos positivos de segunda dimensão. O Estado deveria, a partir de então, proteger o cidadão vulnerável dos abusos da burguesia.
Direitos sociais e Renda Básica
Na Constituição Cidadã, direitos e garantias de primeira dimensão estão, sobretudo, presentes no artigo 5º, em seus 79 incisos. Já os artigos 6º e 7º detalham melhor esta segunda dimensão, além de direitos trabalhistas. Então, no sexto dispositivo, estão presentes os direitos que o Estado deve garantir a todo cidadão brasileiro. Além disso, ele possui um parágrafo único especial que fala sobre a ideia de Renda Básica universal.
Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.
Parágrafo único. Todo brasileiro em situação de vulnerabilidade social terá direito a uma renda básica familiar, garantida pelo poder público em programa permanente de transferência de renda, cujas normas e requisitos de acesso serão determinados em lei, observada a legislação fiscal e orçamentária
Remédios constitucionais
Em meio aos direitos e garantias fundamentais, a Constituição Cidadã também prevê uma série de ferramentas de defesa do cidadão. Estas ferramentas, conhecidas como “remédios constitucionais”, objetivam impedir ilegalidades do Estado ou abuso de poder. São eles: habeas corpus; mandado de segurança; mandado de segurança coletivo; mandado de injunção; habeas data; e ação popular. Todos estes descritos no artigo 5º.
Talvez o mais famoso destes, o habeas corpus, é garantido “sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção por ilegalidade ou abuso de poder”, como afirma o texto constitucional. Trata-se de um instrumento antigo instrumento que remonta às primeiras constituições, particularmente à Magna Carta de 1215 da Inglaterra, do rei João Sem Terra.
Mandado de segurança serve para garantir qualquer direito “líquido e certo” que não seja protegido pelo habeas corpus ou habeas data. Este último garante o direito do cidadão de corrigir ou acessar qualquer informação referente a ele junto ao Estado.
Já na ação popular repousa um interessante instrumento de pouco conhecimento da população. Trata-se de um direito de qualquer cidadão de fiscalizar o Estado. “Qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, ficando o autor, salvo comprovada má-fé, isento de custas judiciais e de ônus da sucumbência”, explica o texto legal.
Do Estado Democrático de Direito
Finalmente, a Constituição Cidadã representa um marco na defesa do Estado Democrático de Direito. Este, afinal, deve ser um dos papeis do Direito. “Atravessamos o mar revolto que incluiu tentativa de golpe de Estado. Entendemos (quase) tardiamente que devemos considerar o Direito como um grau acentuado de autonomia frente à política, moral e econômica”, como explica o professor jurista Lênio Streck.
“De todo modo, continuo propondo o que já fizera no dia 6 de outubro de 1988, quando fiz meu primeiro judicial review tornando não recepcionado o procedimento judicialiforme (Lei 6.416): a resistência constitucional. Cunhei a frase em 2014: cumprir e propugnar pela legalidade constitucional hoje é um ato revolucionário. Sejamos revolucionários”, finaliza Streck.