Passava do meio-dia de quinta-feira 24 de maio de 1984 quando mais de 100 estudantes desembarcaram na estação Sé do metrô, no centro de São Paulo, carregando colchões e mochilas. Divididos em trios espalhados pela praça, eles observavam o vaivém dos pesados portões do número 108, na esquina da rua Benjamin Constant. Era o endereço da reitoria da Unesp.
Quando as portas se abriram por um instante para um entregador, os alunos aproveitaram a deixa, avançaram, passaram pelo porteiro e subiram até o sétimo andar, bradando “Unesp unida jamais será vencida”.
“Ocupamos”, lembra Domingos Carnesecca Neto, 67, à época estudante de economia do câmpus de Araraquara. Assim que se instalaram no edifício, os alunos dispararam mensagens de telex para todos os câmpus e redações de jornal, informando que a reitoria estava ocupada: eles exigiam eleições diretas na universidade.
Um dos lemas era “diretas urgentes para reitor e presidente”.
“Era tempo de democracia e abertura política com ares de liberdade e contestação”, define Gilberto Moreira Mello, 63, que estudava medicina no câmpus de Botucatu. No boom da campanha das Diretas Já, nos câmpus também se discutia como democratizar as universidades, conta ele, hoje médico radicado em Santos. Discussões assim aconteceram na Ufscar, na Unicamp e na PUC-SP, mas foi na Unesp que a causa tomou corpo.
Os dias que os estudantes passaram ocupando a reitoria foram intensos: organizaram assembleias e atividades culturais, confeccionaram faixas para pendurar no prédio, fizeram faxina, conversavam sobre Diretas Já e DCE Livre, cozinharam a própria comida utilizando ingredientes de cestas cedidas pela Arquidiocese de São Paulo e levaram jornalistas para um “tour” pelas instalações para mostrar que estava tudo em ordem, pois não queriam ser acusados de baderna. “Foi uma República de estudantes, com ‘R’ maiúsculo”, diz Solange Tóla, 61, então estudante de agronomia de Botucatu, que também participou da ocupação.
Perto dali fica a Faculdade de Direito da USP, no Largo São Francisco. O jornalista Eugênio Bucci, então presidente do centro acadêmico 11 de Agosto, foi à ocupação prestar solidariedade aos estudantes unespianos e ofereceu apoio jurídico da famosa “San Fran”. O movimento também atraiu atenções de artistas e políticos – entre eles, Eduardo Suplicy (PT) e José Genoíno (PT). Até o vice-governador, Orestes Quércia (MDB), foi visitar o endereço, num sinal de apoio extra-oficial do governo paulista e disse “Parabéns” aos estudantes, relata Tércio Loureiro Redondo, 66, então integrante do centro acadêmico de Botucatu. Franco Montoro (MDB), um dos articuladores das Diretas Já, era quem ocupava o Palácio dos Bandeirantes. Estava nas mãos dele o destino da reitoria.
Na época, o Brasil ainda estava sob a ditadura militar — então, um movimento estudantil tão ousado pôs o governo Montoro, democraticamente eleito, na berlinda. O escolhido para destravar a parte mais visível do imbróglio foi Michel Temer (MDB), então secretário de segurança pública. Quando Temer bateu à porta da reitoria, o estudante Domingos Carnesecca Neto saiu para encontrá-lo no meio-fio. Temer pediu uma desocupação pacífica, e disse que Montoro se comprometera a realizar uma “transição democrática” na Unesp. Neto levou a proposta à assembleia e, no fim da tarde de 30 de maio de 1984, após seis dias de permanência, os 100 estudantes deixaram o prédio, com “mochilas nas costas, faixas de protesto estendidas e muito choro”, conforme reportou o Estadão.
Uma das faixas que ficou marcada na ocupação, pendurada no alto do prédio, dizia: “A Unesp é nossa”.
Foi a primeira vez que um movimento conseguiu congregar os diferentes câmpus – na época, a universidade tinha 15 unidades, 44 cursos e 63 habilitações. “Foi um movimento muito orgânico, com alunos, docentes e servidores”, diz João Castilho, 61, que era presidente do centro acadêmico de Botucatu e representante discente do Conselho Universitário na reitoria, à época chamado de “Jhonny”.
“Sempre é bom lembrar essa história, afinal, memória é o que faz a gente ser o que a gente é. Cada vez que a gente conversa, a gente constrói memória. E, se a gente não conta com documentos, a memória muitas vezes vira lenda”, pondera ele, hoje um especialista de Alzheimer radicado em Sinop (MT).
Entre 1983 e 1984, o movimento que agitou a Unesp teve altos e baixos, impasses e reviravoltas, que foram registrados na imprensa e nos boletins publicados nos câmpus. Muitos deles estão preservados no acervo do Cedem (Centro de Documentação e Memória), instalado justamente na antiga reitoria, na Sé, e do Centro de Memória da FMB (Faculdade de Medicina de Botucatu). Em fins de 1983, o Jornal do Campus da FMB, em uma “edição histórica” feita à mão, cravava em uma manchete: “Unesp escolhe seu reitor: William Saad Hossne”.
Um clima de democracia
Em 1982, ocorreram as primeiras eleições diretas para o cargo de governador desde 1966. Nos três maiores colégios eleitorais do país, SP, RJ e MG, os eleitos foram candidatos de oposição ao governo militar. Foi nesse clima que a oposição começou a acalentar o sonho de eleições diretas para presidente em 1985, o ano que marcaria, em definitivo, o retorno do poder às mãos dos civis. Manifestações pedindo voto popular se espalharam pelo país, escalando ao Congresso Nacional com a Proposta de Emenda Constitucional 05/83, apresentada pelo parlamentar Dante de Oliveira, que estipulava o voto direto para as eleições em 1985.
Entre a primeira manifestação do movimento das Diretas Já, no interior de Pernambuco, e os atos históricos que reuniram milhares de manifestantes nos centros das principais capitais, o país foi tomado por um clima de democracia e luta por liberdade.
Em 1983, o clima contagiou o campus de Assis: docentes do ILHPA (Instituto de Letras, História e Psicologia de Assis) discutiam a possibilidade de que a eleição do próximo diretor da unidade se desse por meio do voto direto, e compartilharam essa visão com a comunidade por meio de um boletim informativo.
“Era um critério, diga-se de passagem, ainda inédito nas universidades, mas inteiramente afinado com as necessidades liberalizantes de um país ainda em camisa de força”, disse João Francisco Tidei Lima, que era docente do curso de história na unidade, em depoimento publicado no livro Tenho algo a dizer, projeto do Cedem e do OEDH (Observatório de Educação em Direitos Humanos), publicado pela editora Cultura Acadêmica, em 2014, que coletou as memórias de unespianos relativas ao período da ditadura militar.
Em medos de junho de 1983, ocorreu a votação para diretor do ILHPA, conduzida com apoio da Associação de Docentes da Unesp (Adunesp). O mais votado foi o docente Antônio Quelce Salgado, chefe do Departamento de Psicologia do ILHPA, com 26,6% dos votos. Em 5º ficou o então diretor, Fernando Mendonça, com apenas 8%. Na época, os diretores eram apontados pelo reitor. Armando Octávio Ramos ignorou a votação e apontou Fernando Mendonça para novo mandato. O núcleo da Adunesp, então, emitiu uma nota repudiando a escolha e clamando pela mobilização da comunidade.
Assis viveu, a partir daí, dias barulhentos: alunos e docentes fizeram manifestações no campus e na cidade, inclusive nas férias de julho, o assunto foi levado à câmara, a imprensa passou a cobrir a história, o diretório acadêmico ocupou a diretoria. Uma das formas de protesto consistia em bater um bumbo sem parar no prédio onde ficava o Diretor. “Nós tivemos o bumbo enorme tocando durante seis meses, dia e noite no campus: Bum! Bum! Bum!”, disse Ulysses Telles Guariba Netto (1940-2017) em relato ao livro Tenho algo a dizer.
Mendonça não conseguia sequer entrar na diretoria, o que repercutiu do interior à capital (o Estadão definiu a ocupação inédita como “delinquência universitária”). Na volta às aulas no dia 1º de agosto de 1983, o diretor acionou a Polícia Militar para conter os bumbos e as canções – entre elas, versos de Chico Buarque que ficaram famosos na ditadura: “Apesar de você, amanhã há de ser outro dia”.
Manifestantes deitaram e ficaram esperando serem carregados para fora pela PM, um a um. Com o tempo, a ocupação de mais de 60 dias foi se enfraquecendo e, em uma assembleia já diminuta, decidiu-se desocupar e entregar a chave da diretoria ao governador Franco Montoro (PMDB), junto de um abacaxi. “Era um símbolo da situação: o governador dizia ‘estamos do lado de vocês, mas não podemos fazer nada’. Era um abacaxi”, lembra José Sterza Justo, 71. “Eu era um jovem professor, primeiro no campus de Marília, depois no de Assis. Não tinha internet, mal tinha telefone, mas tinha muita garra.”
A mobilização da comunidade acadêmica em Assis foi recebida com mensagens de apoio por parte da UNE (União Nacional dos Estudantes) e da Andes (Associação Nacional de Docentes de Ensino Superior). Também criou o clima político para que docentes ligados à Adunesp decidissem arriscar um passo mais ousado: chamar uma mobilização geral da universidade pela eleição direta para o cargo de reitor.
De Assis a Saad
William Saad Hossne (1927-2016) estava no epicentro do movimento das diretas para reitoria da Unesp. Foi um dos fundadores da Faculdade de Ciências Médicas e Biológicas de Botucatu (que posteriormente seria incorporada à Unesp como FMB), diretor científico da Fapesp e reitor da Ufscar entre 1979 e 1983. Era, segundo alunos e amigos que conviveram com ele na época, um cirurgião carismático de perfil progressista e, acima de tudo, um democrata.
Antônio Luiz Caldas Júnior, 73, diz que a avaliação era que Saad era o candidato “ideal”, pois era o candidato “possível”: “Queríamos de fato mudar a Unesp. Queríamos realmente vencer. Isso não aconteceria com um candidato ‘de protesto’ ou muito ‘militante’”. Caldas conta que uma vez viajou para fazer campanha para Saad em um dos câmpus da Unesp e encontraria o então senador Fernando Henrique Cardoso, que lhe interrompeu: “Lá por 1950 e bolinha, enquanto estava fazendo meu doutorado, precisava aprender estatística e foi me indicado um cara que entendia de estatística: era Saad”.
No livro Tenho algo a dizer, Saad conta que, quando era reitor da Ufscar, a comunidade universitária expressou o desejo de eleger o reitor seguinte por voto direto. Citava-se a Lei 6733, de 1979, que dizia que todos os dirigentes de fundações seriam nomeados por indicação direta do Presidente da República, sem mandato. Como todas as universidades federais após 1961 foram abertas como fundações, então os reitores não seriam mais indicados pelo Conselho Universitário. Assim, a comunidade fez a consulta e Saad saiu vencedor. “O governador não me escolheu, deixou o vice, a Ufscar entrou em greve”, Saad conta no livro. No fim, fez um acordo para revogar a Lei 6733, que deu fim à greve, e deixou o cargo. Anos depois, foi procurado para ser candidato à reitoria da Unesp.
No seu relato, Saad atribui ao então reitor da Unesp Armando Octávio Ramos, que fora vice-reitor entre 1976 e 1980 e cujo mandato reitoral iniciado em 1980 se estenderia até 1984, o desejo de continuar no cargo após o fim do mandato, embora isso fosse vedado por lei, e que queria demonstrar à comunidade que tinha poder junto ao governador para obter esta nova nomeação. Foi neste contexto que surgiu a sua candidatura. “Fui procurado para ser candidato. (…) Não queria ser candidato. De qualquer forma, acabei inscrito pela comunidade e pelas associações de docentes, a de Botucatu e a da Unesp.”
A Adunesp organizou a consulta. Foram instituídas diferentes candidaturas com nomes relevantes da Unesp que incluíram, além de Saad, o próprio Antônio Quelce Salgado e Nilo Odália, ex-presidente da Adunesp e ex-diretor do campus de Araraquara. Os candidatos percorreram as unidades conversando com a comunidade, apresentando propostas, distribuindo material eleitoral e debatendo. “Era emocionante ser convidado pelas unidades e, diante de um auditório lotado, contar a história da universidade, respondendo perguntas, interagindo com a comunidade”, relatou Saad.
No fim de 1983, alunos, docentes e servidores puderam se manifestar na consulta organizada pela Adunesp. Saad, do campus de Botucatu, teve mais de 7,3 mil votos; Nilo Odália, ex-presidente da Adunesp e ex-diretor do campus de Araraquara, 3,7 mil. No entanto, o Conselho Universitário, controlado pelo reitor, deu de ombros para o pleito. Informou que não tinha valor, e que organizaria, pela primeira vez, sua própria consulta junto a comunidade. Esta, sim, teria o poder legítimo de indicar nomes para compor a lista que era tradicionalmente apresentada ao governador para que ele apontasse o novo reitor.
Foi feita uma nova consulta, nos conformes de uma recente resolução (36/83), uma surpresa: novamente Saad ficou em 1º lugar, com 2,8 mil votos. Nilo Odália mais uma vez ocupou a segunda posição, com 1,5 mil. O então reitor Armando Octávio Ramos havia incluído o próprio nome, sendo que a regulamentação para a elaboração da lista à época não permitia candidaturas a reeleição. Mesmo assim, alcançou 545 votos. José Fonseca, de São José dos Campos, teve 330, José Trindade, de Botucatu, 297, e Wilson Abrão Saad, de Araraquara, 103.
Entretanto, em fevereiro de 1984, quando o Colégio Eleitoral se reuniu para elaborar a lista a ser encaminhada ao governador para a escolha do novo reitor, a ordem foi toda embaralhada: um Saad liderava, mas não era William, era Wilson. E, no fim, a lista de fato endereçada ao governo ficou ainda mais confusa: em ordem, ficaram Fonseca (São José dos Campos), Trindade (Botucatu), Raphael Lia Rolfsen (vice-reitor à época), Ramos (reitor), Saad (Wilson, não William) e Wanderley Melo (Jaboticabal).
Ninguém entendeu nada. Ao mesmo tempo, todo mundo entendeu tudo. Composto majoritariamente por acadêmicos alinhados à reitoria, o Colégio Eleitoral não queria ouvir a comunidade unespiana, e simplesmente limou os dois candidatos mais votados Willian Hossne Saad e Nilo Odália. Embora a universidade tivesse de mandar uma lista tríplice, o conselho optou por mandar uma sêxtupla, tirando da cartola os nomes de Rolfsen e Ramos.
As diretas estão no ar
Mas o clima político já tinha mudado. Em 1984, enquanto as Diretas Já agitavam o país, não demorou para que protestos pipocassem no estado contra a lista sêxtupla de candidatos a reitor enviada pelo Colégio Eleitoral ao governador Franco Montoro. Delegações de vários câmpus (entre eles Araraquara, Araçatuba, Assis, Botucatu, Guaratinguetá, Jaboticabal, Marília, Presidente Prudente, Rio Claro e São José do Rio Preto) foram de ônibus ao Palácio dos Bandeirantes para contestar a lista com Ramos e sem Saad. Montoro discursou ao fim do encontro, comprometendo-se a “resolver” o impasse.
Em março de 1984, acabou o mandato do reitor Ramos. Sem que houvesse uma solução à vista, assumiu o vice, Rolfsen. No mês seguinte, acabou o mandato de Rolfsen, assumiu o pró-reitor Manuel Nunes Dias, do campus de Franca. Nunes era diretor da Escola de Comunicações e Artes da USP, antes de se integrar à Unesp. Na USP, teria perseguido estudantes e, na Unesp, compôs a sindicância que quis punir alunos de Assis, conforme relatos no livro Tenho algo a dizer.
Nunes tampouco foi aceito. Pouco tempo depois, em uma assembleia na Fatec (Faculdade de Tecnologia de São Paulo), estudantes decidiram ocupar a reitoria na Sé, o que mobilizou imprensa, intelectuais e políticos nas discussões sobre uma universidade mais democrática.
Caberia agora a Montoro encontrar a melhor via para conduzir a Unesp, da forma mais tranquila possível, em sua própria transição democrática.
O segundo e último episódio da reportagem sobre o processo de transição democrática na Unesp foi publicada na quinta-feira, dia 5 de dezembro, e pode ser lida neste link.
Por Juliana Sayuri, para o Jornal da Unesp