Desde que foi eleito nos Estados Unidos em 2024, em meio às comemorações dos 35 anos da última invasão norte-americana ao Panamá, Donald Trump voltou a desrespeitar a soberania do país latino com declarações sobre o controle do Canal do Panamá. A passagem marítima liga os oceanos Pacífico e Atlântico pelo meio das Américas. Trata-se de um local estratégico e essencial para o comércio da global.
Segundo Olmedo Beluche, analista político e social panamenho, tais ameaças são parte de uma tentativa de Trump de atualizar a velha Doutrina Monroe para o século XXI. Mas quais seriam os motivos por trás dessa postura? A TVT News conversou com o professor titular de Sociologia da Universidade do Panamá para entender o caso.
“Acredito que este seja o final do processo de globalização neoliberal que vivemos desde os anos 1980 até o presente. Estamos em uma situação que lembra muito o que foi a crise das décadas de 1930, pré Segunda Guerra Mundial (…) Se promoverem uma intervenção militar no Panamá, o Panamá voltaria a ser obrigada a fazer uma luta que fez contra a presença de tropas americanas na década de 1970 e anteriormente”, afirma.
Trump, protecionismo e o fantasma vermelho
Trump tem utilizado uma série de argumentos para justificar suas pretensões sobre o Canal do Panamá, desde acusações de tarifas abusivas cobradas aos navios norte-americanos até o suposto controle chinês sobre o canal. Os Estados Unidos financiaram e participaram da construção do canal entre 1904 e 1914. Então, o controlaram por um século. Seu controle envolvia presença militar no país latino e ameaças à soberania local. Com a China, a história não é a mesma.
“O Canal do Panamá está sendo operado pela China. Nós não o entregamos à China”, afirmou Trump, em declaração recente. A retórica de Trump reflete não apenas suas políticas protecionistas, mas também a preocupação crescente com a influência chinesa na América Latina. Um ponto central da política de Trump é de ameaçar o gigante asiático com palavras duras e possibilidade da criação de taxas abusivas para tentar prejudicar a economia chinesa.
Desde 2017, quando Panamá estabeleceu relações diplomáticas com a China, o país asiático se tornou um dos principais parceiros comerciais panamenhos. Empresas chinesas administram portos adjacentes ao canal e participam de obras de infraestrutura como a construção do quarto ponte sobre o canal. Apesar disso, segundo Beluche, “o Panamá continua sendo um títere do imperialismo norte-americano, o que se reflete no alinhamento do país com Washington na ONU e na OEA.”
Isso porque a presença chinesa não significa intervenção. Trata-se apenas de uma relação bilateral com respeito às soberanias dos envolvidos. “A influência chinesa no Panamá, ainda que exista em alguns lugares, não implica que o governo panamenho e suas autoridades respeitem cegamente ao imperialismo Chinês, como pretende argumentar Trump.”
Caso a intervenção expansionista de Trump se concretize, inclusive, a expectativa é dupla. Uma resposta deve ecoar do povo. Outra, das elites. “A atitude do povo panamenho será a atitude de defesa da soberania e de seu território frente a qualquer intromissão de uma potência estrangeira no país. A atitude da classe dominante panamenha e de seus governantes, seguramente será de se dobrar aos interesses dos Estados Unidos. Não verão as consequências. Por mais que o presidente condene as palavras de Trump”, comenta o professor.
A Doutrina Monroe revisitada
A postura de Trump em relação ao Canal do Panamá e outras regiões, como o Canadá e a Groenlândia, não pode ser dissociada de uma tentativa de reviver a Doutrina Monroe. Desde 1823, essa política serve de justificativa para a hegemonia norte-americana na América Latina, com intervenções, golpes de Estado e sanções econômicas contra países que tentam fugir de sua órbita. Trump busca reposicionar os Estados Unidos em meio à crescente competição econômica com a China, uma disputa que, segundo Beluche, “poderia evoluir para um confronto de blocos econômicos similar às guerras mundiais.”
“A política de Trump é como uma atualização da doutrina Monroe do século 19, do presidente James Monroe, em 1823, que defendia uma ‘América para americanos’ (…) O que diz de justificativa, os Estados Unidos, para propor posicionar, no Panamá, uma base militar, provavelmente. Não acredito no controle administrativo, propriamente, mas sim a presença militar que eles perderam com a aplicação do tratado de 1977 e da entrada do século 21.”
Resistência no Panamá
Desde sua inauguração em 1914, o Canal do Panamá tem sido palco de disputas geopolíticas e luta por soberania. Em 1964, o massacre de manifestantes panamenhos por soldados norte-americanos desencadeou um movimento que culminou com a transferência da administração do canal para o Panamá em 2000. Nos últimos 24 anos, o canal gerou US$ 28,2 bilhões para o tesouro panamenho, evidenciando os ganhos da luta soberana.
As declarações de Trump provocaram uma resposta quase unânime de rejeição no Panamá, incluindo de aliados históricos dos EUA, como o presidente José R. Mulino. Ainda assim, analistas como Beluche alertam para a histórica conivência da elite panamenha com o imperialismo norte-americano, como ocorreu na invasão de 1989.
O futuro do canal e a luta por unidade
Frente às ameaças de Trump, Beluche destaca a importância de uma mobilização popular panamenha e latino-americana. Ele convoca a região a reavivar o ideal de unidade promovido por Simón Bolívar no Congresso do Panamá em 1826. O Canal do Panamá, mais do que um recurso econômico, simboliza a resistência histórica de um povo contra a dominação estrangeira. O número de mortos durante sua construção evidencia sua relevância (confira a seguir). Para Beluche, “Trump pode ser vencido. E o povo panamenho tem em sua história os exemplos e a coragem necessários para resistir.”