BNDES seleciona profissionais negros para criar museu a céu aberto no Rio de Janeiro

Serão escolhidos arquitetos e urbanistas negros para apresentar projetos voltados à região conhecida como Pequena África
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Serão escolhidos arquitetos e urbanistas negros para apresentar projetos voltados à região conhecida como Pequena África, no Cais do Valongo. Imagem: Caio Clímaco/Wikimedia Commons

Concurso do BNDES vai reconhecer ideias urbanísticas e arquitetônicas para região do Cais do Valongo, conhecida como Pequena África, no Rio, que concentra sítios de memória que remetem à sobrevivência de pessoas escravizadas. Veja em TVT News.

Reportagem de Girrana Rodrigues, com informações da Agência Brasil.

BNDES seleciona profissionais negros em projetos de valorização da Pequena África

Na sexta-feira (21) foi anunciado no teatro do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), no centro do Rio de Janeiro, um concurso que vai selecionar arquitetos e urbanistas negros para criar uma espécie de museu a céu aberto na Pequena África – como é chamada uma região da Cidade Maravilhosa que inclui os bairros da Saúde, Gamboa, Santo Cristo, Praça Onze e Centro. O evento contou com ministros, políticos e representantes de movimentos sociais.

Concurso Pequena África

Em vídeo exibido durante a apresentação, a região da Pequena África é apresentada como um museu a céu aberto, um espaço de memória e resistência, onde a história do Brasil é escrita a cada esquina. ”Suas praças, becos e vielas sussurram crônicas esquecidas dos nossos infinitos Brasil”, descreveu o vídeo.

Ainda durante o lançamento, o grupo cultural afoxé Filhos de Gandhy fez uma apresentação. O prédio sede da Associação Cultural Recreativa Filhos de Gandhi deve ser revitalizado. “O Gandhi é um dos pioneiros da Pequena África e tenho certeza que o BNDES vai olhar com muito carinho para nossa sede que precisa de uma reforma”, disse Célio Oliveira, do Cultural Recreativa Filhos de Gandhi para o repórter Jader Teóphilo da TVTNews

A concorrência pública é voltada exclusivamente para profissionais negros e escritórios que tenham negros à frente das equipes e as inscrições podem ser feitas até 18 de abril. A entrega das propostas de intervenções urbanísticas e arquitetônicas têm prazo até 15 de maio. Todos os candidatos passarão por heteroidentificação – procedimento em que uma banca analisa as características físicas de uma pessoa para identificar a cor ou etnia.

As propostas devem contribuir para a criação de um ambiente urbano integrado e funcional. Os arquitetos podem abranger ações culturais, estratégias de mobilidade urbana e até soluções de comunicação visual, mobiliário urbano e intervenções de pequeno porte. A ideia é que seja realçada a identidade local e consolidada a região como espaço de referência cultural e social.

Além disso, os projetos devem manter foco na valorização do patrimônio, no estímulo à economia criativa e na ampliação do acesso à cultura. Um exemplo de intervenção é a integração de marcos históricos e percursos significativos. A ideia é fazer com que visitantes que passeiam pela região se percebam em um museu de território.

O resultado será decidido será decidido por um júri formado por cinco representantes: Prefeitura do Rio de Janeiro,Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB),Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan),Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Brasil e Comitê Gestor do Sítio Arqueológico do Cais do Valongo.

Os três projetos selecionados receberão prêmios que somam R$ 300 mil. O 1° lugar receberá R$ 78 mil, o 2° colocado vai receber R$ 39 mil e o 3º colocado: R$ 13 mil.

Dia Internacional pela Eliminação da Discriminação Racial

O lançamento do concurso aconteceu no Dia Internacional pela Eliminação da Discriminação Racial, uma data criada pela Organização das Nações Unidas (ONU). Aqui no Brasil, o 21 de março, é também o Dia Nacional das Tradições das Raízes de Matrizes Africanas e Nações do Candomblé, data instituída por meio de uma lei proposta pelo deputado Vicentinho (PT-SP) e sancionada pelo Presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Na cerimônia a diretora de Pessoas do BNDES, Helena Tenório representou na cerimônia o presidente do banco, Aloizio Mercadante. Para ela, a data serve como reflexão para fortalecer políticas públicas e preservar a memória da resistência negra. “É isso que todos estamos fazendo hoje aqui”, afirmou.

A preparação do concurso envolveu a escuta de mais de 150 horas na região, com a entrevista de 600 moradores.

Cais do Valongo

O Sítio Arqueológico do Cais do Valongo, uma das principais atrações da Pequena África, é reconhecido como Patrimônio Mundial pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). Historiadores apontam que cerca de 1 milhão de escravizados tenham desembarcado nas Américas pelo Cais do Valongo.

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Cais do Valongo, principal porto de entrada de escravos nas Américas é reconhecido como Patrimônio da Humanidade pela Unesco. Imagem: Fernando Frazão/Agência Brasil

Em entrevista à TVT News, durante o lançamento, o Renato Emerson dos Santos,  integrante do Consórcio Valongo Patrimônio Vivo, afirma que este é sobretudo um compromisso do Estado brasileiro com a população negra. “A ideia de pequena África vem sendo construída pelo movimento negro, aqui, do Rio de Janeiro, desde a década de 1980, pelo menos. Estava presente no livro do Nei Lopes, de 1982, essa ideia do território no centro da cidade que é o berço do samba, da cultura e de ativismos políticos”.


Ainda, o Marcos Motta, coordenador da Iniciativa Valongo afirmou que serão levantadas todas as histórias do local. “Vamos conectá-las para que a gente possa contar toda a memória que está latente do território e será feita uma requalificação urbana. Para que isso tenha legitimidade, a gente está fazendo o concurso nacional, mas serão equipes multidisciplinares, com historiadores, sociólogos e pessoas da cultura”.

Pequena África no Rio de Janeiro

A Pequena África já é considerada uma das regiões mais visitadas por turistas no Rio de Janeiro e concentra dezenas de quadras na região portuária, sendo um registro geográfico da chegada ao Brasil de africanos escravizados.

Um passeio pelas ruas da Pequena África se transforma em uma aula sobre a influência negra na construção das identidades carioca e brasileira. Na região, além de sítios arqueológicos, como o Cais do Valongo e o Cemitério dos Pretos Novos, ficam pontos marcantes do legado africano na cidade, como o Quilombo da Pedra do Sal, a Casa da Tia Ciata – matriarca do samba ─ e o Museu da História e da Cultura Afro-Brasileira (Muhcab).

Entre 1772 a 1830, o Cemitério dos Pretos Novos era local de sepultamento dos escravizados que morriam após a entrada dos navios negreiros na Baía de Guanabara ou imediatamente depois do desembarque, antes mesmo de serem vendidos. Hoje, existe no local o Instituto de Pesquisa e Memória Pretos Novos (IPN), que pesquisa e preserva esse patrimônio material e imaterial africano.

Valorização da Pequena África: reparação e democracia

A ministra dos Direitos Humanos e da Cidadania, Macaé Evaristo, enfatizou a relação entre reparação da herança africana e democracia. “Fazer reparação, reconhecer as violações de direitos humanos, trabalhar para que isso nunca mais se repita é fortalecer a nossa democracia”, disse ela.

Além da preservação e promoção da Pequena África, Evaristo incentivou iniciativas como o ensino da história do continente africano. “Trabalhar pela inclusão da história da África nos currículos escolares é fortalecer a nossa democracia, combater o racismo e compreender que tem uma construção de África que é global, onde quer que a gente esteja”, disse a ministra, que saudou a presença de representantes dos governos dos países africanos Angola e Cabo Verde, que estavam na plateia.

Já a ministra da Cultura, Margareth Menezes, classificou a iniciativa como uma “construção do retorno”. “É a construção do retorno, do merecimento, de reconhecer, de valorizar, de render glórias também à memória dessas pessoas que vieram antes, que sangraram, morreram aqui nesse país”, discursou.

Ao falar de retorno, Margareth Menezes comentou que se emocionou durante uma missão oficial a Benin, país da África Ocidental, onde há um lugar chamado Porta do Não Retorno, lugar que servia de embarque para os escravizados que seguiam para as Américas.

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Macaé Evaristo destacou a importância da medida para a reparação histórica da escravidão no Brasil. Foto: Arthur Augusto/BNDES

“Eu tive uma emoção tão forte”, lembrou. “Os que saíram daqui [África] sobreviveram também, eu sou fruto disso”, relatou o que sentiu no continente africano.

A ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco, afirmou que foi dado mais um passo de “tanta luta que retrata a memória, a força e a resistência do nosso povo”.

Sem dar detalhes, ela adiantou que o governo lançará na próxima segunda-feira (24) a Agenda Nacional de Quilombos. “Quem sabe do quilombo é o quilombola, assim como quem sabe da favela é o favelado”.

Valorização ancestral

Estiveram também no lançamento os presidentes da Fundação Palmares, João Jorge Rodrigues dos Santos, e da Agência Brasileira de Promoção Internacional do Turismo (Embratur), Marcelo Freixo, além de autoridades municipais e parlamentares.

Para o babalawô Ivanir dos Santos, a iniciativa de escolher arquitetos e urbanistas negros não pode ser vista como medida de exclusão. “Não é exclusão, é valorização, com ação afirmativa, dessa capacidade profissional negra, que nem sempre é valorizada e aceita”, constatou.

“Às vezes, quem ganha são grandes escritórios e, então, contratam um negro para poder fazer. Dessa vez, não, é dirigido. Então, isso é uma valorização, inclusive ancestral, nossa”.

Ivanir, que também é conselheiro do Centro de Articulação de Populações Marginalizadas, ressaltou a importância de intervenções na Pequena África serem reproduzidas por profissionais afrodescendentes.

“Este olhar vai ser importante. Não basta ser um arquiteto, tem que ser um arquiteto que tenha um olhar do que representou aquele espaço”, disse.

“Por ali, entrou não só a mão de obra, mas entrou também a cultura, a espiritualidade, a economia, as relações sociais que até hoje são muito presentes na sociedade brasileira como resistência”, completou Ivanir dos Santos.

Com informações de Agência Brasil e TVT News.

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