13 de Maio: a falsa abolição, uma data de reflexão e resistência

A verdade é distante da celebração da abolição oficial. Em vez de evocar gratidão, a data é um lembrete de liberdade tardia e incompleta
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A verdade, como aponta há anos o Movimento Negro e diversos estudiosos, é que a abolição não foi um presente da monarquia. Sim o resultado de uma longa e árdua batalha. Foto: BdF

O 13 de Maio, formalmente reconhecido como o dia da abolição da escravidão no Brasil, carrega para a população negra uma carga histórica dolorosa. A verdade é distante da aura de celebração que a narrativa oficial por vezes tenta imprimir. Em vez de evocar gratidão por um suposto ato de benevolência da Princesa Isabel, a data é mas um lembrete de uma liberdade concedida tardiamente, de maneira incompleta e sob a égide de interesses econômicos e políticos que negligenciaram a integração e reparação devida dos crimes cometidos contra um povo escravizado por mais de três séculos. Entenda na TVT News.

Lei Áurea: redução e desvio de foco

A verdade, como aponta há anos o Movimento Negro e diversos estudiosos, é que a abolição não foi um presente da monarquia. Sim o resultado de uma longa e árdua batalha travada pelos próprios negros, através de fugas massivas, da formação de quilombos como espaços de resistência e liberdade, e da atuação de abolicionistas negros e aliados comprometidos com a causa humanitária.

Reduzir esse processo complexo à assinatura da Lei Áurea por uma figura branca da realeza portuguesa é perpetuar uma mentira histórica que silencia o protagonismo negro e desvia o foco das profundas feridas deixadas pela escravidão, cujos ecos racistas ainda reverberam na sociedade contemporânea.

“O dia 13 de Maio deve ser visto como um dia de denúncia contra pela condição de vulnerabilidade que a população negra enfrenta ainda hoje”, afirma a secretaria de Combate ao Racismo da CUT, Maria Julia Reis Nogueira.

“A data deve servir para lembrar que a população negra continua marginalizada e o racismo persiste em todas as estruturas sociais”, completa. Essa perspectiva crítica ecoa a visão de inúmeros ativistas e intelectuais negros que recusam a romantização de um ato que, embora formalmente libertador, não promoveu uma verdadeira emancipação social e econômica.  

A secretária-adjunta de Combate ao Racismo da CUT, Nadilene Nascimento de Sales, complementa essa análise, enfatizando que “a abolição em 1888 foi o desfecho de um longo processo de luta pelo fim da escravidão, mas não de inserção da população negra na sociedade brasileira. Uma abolição inacabada, uma liberdade incompleta, assim foi a história da abolição dos negros escravizados no Brasil.”

A ausência de políticas de reparação e de integração para os ex-escravizados os lançou em um limbo social, perpetuando a marginalização e a desigualdade racial que estruturam a sociedade brasileira até os dias atuais.  

Protagonismo e abolição

A narrativa oficial, ao enaltecer a figura da Princesa Isabel, opera um apagamento sistemático dos verdadeiros heróis da abolição, homens e mulheres negros que dedicaram suas vidas à luta pela liberdade. Entre eles, destaca-se a figura singular de Luiz Gama, um intelectual, advogado autodidata, jornalista e abolicionista que, mesmo tendo sido ilegalmente escravizado na infância, ascendeu como uma voz poderosa contra a opressão. Sua atuação nos tribunais, defendendo e libertando centenas de cativos, demonstra o protagonismo negro na conquista da própria liberdade, um fato frequentemente obscurecido pela história oficial.

Em um gesto simbólico de reconhecimento dessa luta histórica e de reparação da memória, o governo federal instituiu o Prêmio Luiz Gama de Direitos Humanos, revogando a anterior “Ordem do Mérito Princesa Isabel”. A secretária-executiva do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC), Rita Oliveira, aponta o significado dessa mudança de paradigma: “Não se trata de afirmar que uma pessoa branca não possa integrar a luta antirracista, mas de reafirmar o símbolo vital que envolve essa substituição: o reconhecimento de um homem negro abolicionista enquanto defensor dos direitos humanos.”  

Abolição: resistência de fato

Para Rita Oliveira, a premiação em homenagem a Luiz Gama serve como um farol para iluminar iniciativas que promovem a justiça social e para superar a invisibilidade de figuras históricas cruciais na luta antirracista. “No apagar das luzes do ano passado, desvirtuaram a compreensão do reconhecimento dos trabalhos pela emancipação humanitária: chegaram a premiar pessoas notavelmente propulsoras do discurso de ódio e envolvidas em atos antidemocráticos”, critica a secretária-executiva, sublinhando a importância de um reconhecimento alinhado com os valores da democracia e dos direitos humanos.  

O próprio presidente Luiz Inácio Lula da Silva, ao assinar o decreto que institui o Prêmio Luiz Gama, reforça a necessidade de revisitar a história e reconhecer o protagonismo negro na luta pela abolição. “Recentemente, ao nomearmos o Prêmio Luiz Gama de Direitos Humanos em homenagem a quem, de fato, contribuiu pela luta antirracista e antiescravocrata no Brasil, fizemos um movimento de reconhecimento, memória e reparação simbólica pelo governo brasileiro”, declarou Rita Oliveira, ecoando o espírito da iniciativa.  

A coordenadora-geral de Memória e Verdade sobre a Escravidão e o Tráfico Transatlântico do MDHC, Fernanda Thomaz, enfatiza a urgência de o Brasil reconhecer as profundas raízes da desigualdade racial. “O 13 de maio é uma data que simboliza a luta dos escravizados e abolicionistas pelo fim da escravidão, mas esse marco oficial não tratou de reorganizar a sociedade. Por isso, reivindicar o 13 de maio como mais uma data que simboliza a luta negra contra a escravidão e o racismo é disputar essa memória coletiva”, argumenta a gestora.  

Fernanda Thomaz ressalta que a luta contra o racismo exige o reconhecimento das dores do passado diante de um sistema que continua a oprimir e excluir a população negra. “O Brasil é um país onde o apagamento da história foi mais um instrumento de domínio e de violência pelo mando opressor sobre as pessoas negras”, aponta, vislumbrando um futuro onde a história seja recontada e um caminho mais digno seja pavimentado.  

“Um país, para preservar e lutar por memória e verdade, antes de tudo precisa olhar para o racismo que estrutura a própria sociedade”, reflete Nilmário Miranda, ex-assessor especial do Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania do governo Lula, ao contextualizar a importância da luta antirracista na agenda governamental.  

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Luiz Gama: abolicionista essencial da história brasileira

De Luiz Gama a André Rebouças

A resistência negra, desde os primeiros momentos da escravidão, foi um fator determinante para o enfraquecimento e a eventual abolição do sistema. Como contextualiza o coreógrafo e especialista em Estudos Afro-brasileiros e Africanos, Evandro Passos, “o movimento abolicionista que surgiu no século 18 teve a participação de diversos grupos da sociedade brasileira e vários nomes importantes como Luiz Gama, André Rebouças, Castro Alves, dentre outros e outras, que contribuíram para a culminância da Lei Áurea.” Ele ressalta a importância de reconhecer as “lutas se fizeram presentes, as fugas para os quilombos, o envenenamento de senhores escravagistas, as lutas armadas eram constantes. Então, esse movimento de resistências negras também deu voz para a libertação.”  

A historiadora Denise Nascimento, mestranda pela Universidade de Juiz de Fora, corrobora essa visão, afirmando que “o fim da escravidão foi inevitável pelos meios oficiais justamente pela organização e ação de diversos movimentos negros.” Ela critica a persistência de grupos que tentam minimizar o protagonismo negro nesse processo, transformando a abolição em uma suposta dádiva das elites. “Hoje, ainda existem grupos que insistem em retirar da população negra o seu lugar primordial na construção de uma sociedade livre, sem racismo e verdadeiramente democrática”, frisa Nascimento.  

Para além da celebração vazia, o 13 de Maio deve ser um dia de denúncia contra o racismo persistente e de reafirmação da necessidade de políticas de reparação para a população negra, como defende Denise Nascimento. Os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) revelam que a renda de trabalhadores brancos ainda é significativamente maior que a de pessoas negras, e que a população negra é maioria nos piores indicadores sociais, evidenciando que a “liberdade” de 1888 não se traduziu em igualdade de oportunidades e condições de vida.

A luta pela preservação da memória, pelo reconhecimento da verdade histórica e pela busca por justiça são os pilares que devem guiar a reflexão sobre o 13 de Maio na contemporaneidade. Como bem resume Fernanda Thomaz, “reivindicar o 13 de maio como mais uma data que simboliza a luta negra contra a escravidão e o racismo é disputar essa memória coletiva.” 1 Essa disputa pela memória é fundamental para a construção de um futuro onde o Brasil reconheça suas raízes e promova uma igualdade racial efetiva, tão sonhada por aqueles que lutaram pela abolição, como Luiz Gama e tantos outros heróis e heroínas negras, cujas histórias merecem ser contadas e celebradas.

Com informações da CUT Brasil/Instituto Luiz Gama/Brasil de Fato/MDHC

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