Ar-condicionado para todos: possível solução para a pobreza energética no Nordeste

"'Programa ar-condicionado para todos'” pode ter ingredientes para tratar questão energética de maneira criativa", por Arthur Siqueira
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Nota-se uma grande vocação do Nordeste para a produção de energias renováveis, especialmente fotovoltaica e eólica. Foto: Agência BNDES

Por Arthur Siqueira, engenheiro, eletricista e mestre em planejamento energético para a TVT News.


É notável que as ondas de calor têm se intensificado a cada nova estação. Se pensarmos no Norte e Nordeste do país, os efeitos do aquecimento global são ainda mais duros. Nestas regiões não se trata de ondas, mas fazem parte da rotina temperaturas acima de 22°/24° C, faixa entendida pela ciência como a ideal para o conforto térmico do corpo humano. E as projeções indicam que este cenário de aquecimento tende a piorar. 

Em complemento, nota-se uma grande vocação do Nordeste para a produção de energias renováveis, especialmente fotovoltaica e eólica. Inclusive, o rápido crescimento de novas usinas, estimulado na região, tem se tornado um desafio para a indústria de energia do país.

Acontece que a maior parte do consumo elétrico do Brasil concentra-se no Sudeste e Sul e o Nordeste não tem uma demanda com volume capaz de absorver este excesso de energia produzido localmente. Outra questão técnica se refere ao horário em que este excesso de geração fotovoltaica acontece, se concentrando coincidentemente como os horários de maiores temperaturas.

A consequência é que este excesso de energia elétrica produzida precisa ser transmitido para o Sudeste e Sul nestes horários, sobrecarregando as redes existentes que não tem mais margem para o escoamento dessa energia. 

Questões de transmissão

Nos dois últimos anos foram realizados leilões de transmissão que somam um volume de investimentos da ordem de R$55 bilhões. A maior parte dos empreendimentos concentra-se no Nordeste. Os custos operacionais destes investimentos serão arcados via tarifa durante as próximas décadas, a fim de remunerar as empresas vencedoras e gestoras destes ativos. 

Entretanto, há um descasamento entre os tempos de implementação das usinas e linhas de transmissão. Enquanto as usinas fotovoltaicas levam cerca de 18 a 24 meses para serem implementadas, as linhas de transmissão levam cerca de 48 a 72 meses, ou seja, o prazo mínimo para implementação das linhas de transmissão é superior ao prazo máximo da construção da usina.

Esse descasamento temporal já tem causado problemas pois as usinas que alguns investidores decidiram construir no Nordeste não conseguem escoar a geração para o Sudeste devido à falta de margem nas linhas de transmissão existentes e este fato tem gerado cortes de geração, desperdiçando parte da energia destas usinas. 

Possíveis soluções

Portanto, no curto prazo, existem duas soluções possíveis. Uma é aumentar o consumo de energia no Nordeste e Norte, para absorver o excedente de geração de energia elétrica. Outra é fazer com que as novas usinas estejam mais próximas dos centros de consumo, no Sudeste e Sul. 

Entendo que a primeira solução é mais interessante em termos de promoção de desenvolvimento socioeconômico no Nordeste. Entretanto, para implementá-la há que se pensar em um estratégias de planejamento pelo lado da demanda, algo não trivial na cultura de planejamento energético brasileiro que tem uma visão tradicionalmente ofertista. 

Pobreza energética

A Política Nacional de Transição Energética (PNTE) elaborada pelo atual governo define a pobreza energética como a “situação em que domicílios ou comunidades não tem acesso a uma cesta básica de serviços energéticos ou não tem plenamente satisfeitas suas necessidades energéticas”

Já o recém-lançado Observatório Brasileiro de Erradicação da Pobreza Energética (OBEPE), da Empresa de Pesquisa Energética (EPE) do Ministérios de Minas e Energia (MME), evidencia, com base em dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que as regiões Norte e Nordeste têm maior carência de equipamentos para refrigeração de alimentos, equipamentos de televisão, informática, máquinas de lavar roupa ou fontes modernas para a cocção e equipamentos para conforto térmico como ventilador ou ar-condicionado. 

Neste sentido, temos uma excelente oportunidade de utilizar o excesso de energia gerado na região Nordeste para a promoção de um melhor acesso aos serviços energéticos essenciais às famílias que atualmente não desfrutam desse privilégio. 

A título de ilustração, um ar-condicionado de 7500 BTU Classe A do Procel, ligado uma hora por dia, gasta cerca de 15,8 kWh/mês. Se pensarmos em um uso médio diário de 5 horas, este consumo mensal sobe para cerca de 79kWh. 

Coincidentemente este valor é praticamente equivalente aos 80 kWh por mês que o governo pretende isentar para as famílias de baixa renda através da nova tarifa social, conforme medida provisória assinada pelo presidente Lula no dia 21/05/2025. Medida esta que, segundo informações divulgadas, beneficiarão cerca de 60 milhões de pessoas. Se considerarmos que uma família média tem 3 pessoas, esse programa beneficiaria cerca de 20 milhões de domicílios que tem uma renda média menor que meio salário-mínimo. Para atender estas residências, serão necessários cerca de 1,6GWh por mês. 

Este valor irrisório de 80kWh/mês não é suficiente para dar o mínimo de dignidade para estas famílias. No caso do exemplo de uma família de três pessoas, seriam menos de 27kWh/mês per capita. Ele é menos da metade do valor médio de consumo das residências brasileiras que é de 170kWh/mês. 

Segundo dados da EPE, a faixa de renda que ganha mais de 10 salários-mínimos, tem um consumo médio per capita de 1590 kwh por ano. Se considerarmos a mesma família de 3 pessoas, esse consumo seria de 4770 kwh/ano, ou 398kWh/mês, para as residências desta classe.  Enquanto isso, a classe que ganha menos de 1 salário-mínimo, tem um consumo de anual de 371kWh per capita, o que equivale a 31kWh/mês.  Note a desigualdade social evidenciada em termos de consumo de energia, no qual, uma família rica consome em um mês, uma família pobre consome em um ano.

Ao olharmos com mais profundidade ainda os dados da EPE, notamos que as classes mais baixas tiveram seu maior consumo de eletricidade com geladeiras, enquanto as classes mais altas tiveram com ar-condicionado. 

Ar-condicionado como política

E por que usar o ar-condicionado como ancora para um programa nacional? Sob o contexto de excesso de oferta de energia no Nordeste, altas temperaturas o ano todo, falta de acesso aos serviços energéticos básicos e boa vontade política para erradicação da pobreza energética, o incentivo para o uso de ar-condicionado benefícios ao país em diversos aspectos, assim como o sucesso observado no programa implementado para a linha branca em 2009. 

Sob o ponto de vista de sistema elétrico, a estratégia se mostra vantajosa, já que os horários de uso do ar-condicionado nos momentos do dia em que as temperaturas são mais altas coincide com os períodos de maior produção de energia solar fotovoltaica. 

Sob o ponto de vista industrial, a produção destes equipamentos é um processo que nossa indústria nacional já domina com tranquilidade e poderá atender as demandas dos consumidores. É possível que seja necessário o investimento em uma maior capacidade produtiva, o que também se mostra, uma oportunidade para a promoção do desenvolvimento socioeconômico. 

Há também vantagens que podem ser deslumbradas do ponto de vista da economia local, uma vez que a instalação de equipamentos é tipicamente feita por pequenas e médias empresas, o que proporciona o aquecimento comercial de forma descentralizada. 

Além disso, nós já temos o Programa Minha Casa, Minha Vida (PMCMV) em andamento. Basta que o programa estipule a necessidade de aparelhos de ar-condicionado nos novos imóveis e adeque os projetos para que suas estruturas elétricas e civis suportem estes equipamentos. 

Tal medida se integra ainda ao programa Nova Indústria Brasil (NIB), que em seu plano de ação 2024-2026 prevê que 500 mil residências do PMCMV contarão com sistemas de geração fotovoltaica até 2026. Segundo o NIB, até 2033 este número será de 1,4 milhão de residências. 

Voltando a medida provisória Medida Provisória Nº 1.300, de 21 de maio de 2025, que também prevê a abertura total do mercado de energia elétrica para os consumidores de baixa tensão, o governo tem a opção de contratar parte dessa energia excedente das grandes usinas nordestinas para abastecer estas residências, caso não haja a possibilidade de instalar os pequenos sistemas fotovoltaicos localmente. 

Portanto, temos no “Programa ar-condicionado para todos” os ingredientes para a articulação de uma ação que abordará a questão energética de uma maneira criativa, de forma a promover o desenvolvimento socioeconômico. Os resultados do programa trarão benefícios diversos desde os beneficiários do CadÚnico, até os donos das usinas, CNI, bancos e pequenas e médias empresas, que são majoritariamente de pessoas que fazem parte da classe média.

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