Neste 3 de julho, o Brasil celebra o Dia Nacional de Combate à Discriminação Racial, uma data de memória e resistência, que marca a luta histórica contra o racismo e a desigualdade racial no país. Entenda na TVT News.
A data foi instituída em referência à sanção da primeira lei brasileira a considerar crime a discriminação por raça ou cor, a Lei nº 1.390/1951, conhecida como Lei Afonso Arinos, o dia reforça a necessidade de ações concretas para transformar o ordenamento jurídico e a cultura e as estruturas sociais ainda marcadas por séculos de exclusão.
A criação da lei foi motivada por um episódio de racismo. A recusa de um hotel em São Paulo em hospedar a renomada bailarina afro-americana Katherine Dunham, por conta da cor da pele. Embora inicialmente pouco eficaz em sua aplicação, a norma teve valor simbólico importante. Em 1951, pela primeira vez, o Estado brasileiro admitia e criminalizava o racismo.
Desde então, houve avanços legislativos. Em 1989, a Lei nº 7.716, conhecida como Lei do Crime Racial, ampliou e detalhou os atos puníveis de discriminação, agora tratados como crimes inafiançáveis e imprescritíveis. Em 2010, o Congresso aprovou o Estatuto da Igualdade Racial (Lei nº 12.288), que consolidou políticas públicas voltadas à equidade racial.
Mais recentemente, a luta contra o racismo deu mais um passo significativo com a Lei nº 14.532/2023, sancionada pelo presidente Lula, que equipara o crime de injúria racial ao crime de racismo, reconhecendo sua gravidade e estabelecendo penas mais severas. A equiparação já havia sido reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal (STF), em decisão de 2021, como forma de corrigir distorções no tratamento jurídico da injúria racial, que antes prescrevia e era passível de fiança.
Apesar da robustez legal, os desafios para efetivar os direitos persistem. Segundo levantamento do Ministério Público Federal (MPF), entre 2000 e 2021, 90% das denúncias de injúria racial feitas à Polícia Federal terminaram sem indiciamento dos autores. Os dados revelam uma lacuna grave entre o texto da lei e sua aplicação concreta, fruto do racismo institucional e da omissão de autoridades em muitas instâncias.
Além da repressão ao crime, a prevenção é parte essencial do enfrentamento à discriminação racial. Exemplo disso é o trabalho do Comitê de Políticas Afirmativas e Antidiscriminatórias (COPAA), no Hospital Universitário da Universidade Federal da Grande Dourados (HU-UFGD). Composto por mulheres, pessoas negras, indígenas, LGBTQIA+ e pessoas com deficiência, o grupo realiza ações educativas voltadas a pacientes e profissionais da saúde. “Cada unidade hospitalar tem suas próprias problemáticas, por isso atuamos de forma contextualizada, em parceria com o curso de Psicologia”, explica Iury Viana Santana, psicólogo e coordenador do comitê.
Racismo estrutural
Mesmo com o arcabouço legal e institucional existente, o racismo persiste como estrutura fundacional da sociedade brasileira. O país foi o último das Américas a abolir a escravidão e ainda hoje carrega os traços de um passado colonial e escravocrata. O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) escancarou essa realidade ao divulgar o Diagnóstico Étnico-Racial do Judiciário. O levantamento mostra que mais de 83% dos magistrados brasileiros são brancos, enquanto apenas 1,7% se declaram pretos e 0,2% indígenas. A disparidade também se reflete entre servidores.
Essas desigualdades não se limitam ao Judiciário. Dados do IBGE (2019) indicam que trabalhadores negros recebem, em média, 40% a menos do que os brancos, mesmo com escolaridade equivalente. Em 2022, a taxa de desemprego entre pessoas negras era significativamente maior que a média nacional. Além disso, segundo o Atlas da Violência, quase 76% das vítimas de homicídio no Brasil são negras, embora representem cerca de 55% da população.
A senadora Zenaide Maia (Pros-RN) lembrou: “O dia de hoje é também uma data para reivindicar políticas urgentes para a sobrevivência de quem constitui a base da nossa pirâmide da desigualdade. Vidas negras importam!”. O senador Paulo Paim (PT-RS), autor do Estatuto da Igualdade Racial, também reiterou que o combate ao racismo exige enfrentamento permanente, e que educação antirracista é caminho fundamental.
Linha do tempo jurídica do combate ao racismo
- 1951 – Lei Afonso Arinos (Lei nº 1.390/51): primeira norma legal brasileira a tipificar como contravenção penal a prática de discriminação por raça ou cor.
- 1988 – Constituição Federal: em seu artigo 5º, inciso XLII, estabelece que o racismo é crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão.
- 1989 – Lei nº 7.716: conhecida como Lei do Crime Racial, define os crimes resultantes de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.
- 2010 – Estatuto da Igualdade Racial (Lei nº 12.288): consolida políticas públicas de combate à desigualdade racial em diversas áreas como educação, trabalho, cultura e moradia.
- 2021 – Decisão do STF: Supremo Tribunal Federal equipara a injúria racial ao crime de racismo, estendendo a ela as mesmas características: inafiançabilidade e imprescritibilidade.
- 2023 – Lei nº 14.532/23: sancionada por Lula, altera formalmente a Lei do Crime Racial, tipificando a injúria racial como crime de racismo, com pena de reclusão de dois a cinco anos e multa.
O Dia Nacional de Combate à Discriminação Racial marca um ponto importante no reconhecimento jurídico e social da existência do racismo no Brasil. No entanto, o caminho entre o reconhecimento formal e a transformação concreta das estruturas sociais ainda é longo. A existência de leis que criminalizam a discriminação racial é fundamental, mas não suficiente para garantir a superação das desigualdades historicamente impostas à população negra.
A persistência de índices elevados de violência, desemprego e sub-representação em espaços de poder mostra que o racismo permanece ativo nas relações sociais, nas instituições e nas oportunidades econômicas. O conceito de racismo estrutural ajuda a compreender por que, apesar das normas legais, práticas discriminatórias continuam a se repetir, muitas vezes de forma naturalizada ou invisibilizada.
Nesse contexto, é necessário que o combate ao racismo vá além da punição legal. Ele deve envolver políticas públicas efetivas, com foco na educação, na redistribuição de oportunidades e na inclusão de pessoas negras em todas as esferas da vida pública e privada. A responsabilização por práticas discriminatórias deve ser acompanhada por medidas de prevenção e formação social, especialmente nas instituições que historicamente reproduzem desigualdades.
Mais do que celebrar marcos legais, a data de 3 de julho deve servir para avaliar criticamente os limites das conquistas já alcançadas e reafirmar o compromisso com a construção de uma sociedade onde os direitos previstos na lei se realizem, de fato, para todos.