Ao longo das últimas décadas, o vocabulário das relações internacionais foi moldado por termos como “Terceiro Mundo”, “G7“, “G20“, “Emergentes”, “Tigres Asiáticos”, “Sul Global” e “Movimento dos Não-Alinhados”. Mais do que expressões técnicas, esses conceitos traduzem dinâmicas históricas de poder, dependência, desigualdade e tentativas de reconfiguração da ordem mundial. Entenda na TVT News.
De Bandung a Brasília, da Guerra Fria à multipolaridade contemporânea, esses termos revelam não apenas a geografia da economia, mas os embates entre dominação, colonialismo e movimentos em busca de autonomia.

Proprietários do Terceiro Mundo
O termo “Terceiro Mundo” foi cunhado em 1952 pelo sociólogo francês Alfred Sauvy. Inspirado na divisão dos estados franceses pré-revolucionários, Sauvy identificava um conjunto de países que não se alinhavam nem ao bloco capitalista liderado pelos Estados Unidos (o chamado Primeiro Mundo), nem ao bloco socialista da União Soviética (o Segundo Mundo).
Em um artigo no L’Observateur, escreveu: “Porque finalmente este Terceiro Mundo, ignorado, explorado, desprezado como o Terceiro Estado (na França), também quer ser alguma coisa”. A noção ganhou densidade política na Conferência de Bandung (1955), que reuniu 29 países da África e da Ásia recém-saídos do colonialismo, lançando as bases do que viria a ser o Movimento dos Países Não-Alinhados.
“Porque finalmente este Terceiro Mundo, ignorado, explorado, desprezado como o Terceiro Estado, também quer ser alguma coisa“, Alfred Sauvy
Os Não-Alinhados
Formalizado em 1961 em Belgrado, o Movimento dos Não-Alinhados foi uma tentativa de articular uma terceira via diante da polarização da Guerra Fria. Com liderança de figuras como Nehru (Índia), Nasser (Egito), Tito (Iugoslávia) e Sukarno (Indonésia), o movimento buscava garantir soberania, cooperação entre nações em desenvolvimento e resistência à ingerência de potências. Era, em essência, uma afirmação de independência política e econômica do chamado Terceiro Mundo.
Ao fim da Guerra Fria, com o colapso da União Soviética em 1991, o sistema de três mundos perdeu força. Em seu lugar, emergiu o conceito de Sul Global, que passou a nomear os países historicamente colonizados, periféricos no sistema econômico, e que enfrentavam legados de pobreza, instabilidade política e desigualdades estruturais. Como define o cientista político Vijay Prashad, autor do livro The Poorer Nations: A Possible History of the Global South (ou As Nações Pobres: Uma possível história do Sul Global), o Sul Global é tanto uma localização geopolítica quanto uma posição política contra as desigualdades do capitalismo global.
O que é Sul Global
Sul Global é tanto uma localização geopolítica quanto uma posição política contra as desigualdades do capitalismo global
“O termo Sul Global foi usado pela primeira vez pelo ativista político de esquerda americano Carl Oglesby. Acadêmico ativo no movimento antiguerra nos Estados Unidos na década de 1960, Oglesby instou a chamada Nova Esquerda a formar uma aliança com a Velha Direita liberal e não intervencionista em oposição à política externa imperialista americana”, como explica o diretor do Gabinete da Presidência do Instituto Chinês de Relações Internacionais Contemporâneas, Li Yan.
O chinês completa: “com a eclosão da crise na Ucrânia e o aumento dos jogos de azar por parte dos principais países, o uso do termo Sul Global expandiu-se, de forma clara e rápida, dos círculos acadêmicos para a política internacional. Só neste ano, a Índia realizou uma cúpula online chamada ‘Voz do Sul Global’; o Sul Global foi mencionado dezenas de vezes no Relatório de Segurança de Munique; o Japão convidou alguns ‘países do sul’ para a cúpula do G7 em Hiroshima e incluiu na agenda um item relacionado ao fortalecimento das relações com os países do Sul Global; e a cúpula dos BRICS, sediada pela África do Sul, impulsionou ainda mais a popularidade da expressão”.
Então, esse Sul Global se consolida não apenas como diagnóstico, mas como projeto. A Declaração de Buenos Aires (1978) estabeleceu um marco para a cooperação Sul–Sul, propondo que países em desenvolvimento compartilhassem tecnologia, conhecimento e políticas públicas entre si. Em 2003, o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) publicou o relatório Forjando um Sul Global, no qual defendia que os países do Sul deveriam assumir maior protagonismo nas decisões internacionais, com “apropriação nacional” de suas estratégias de desenvolvimento.
Brics e Sul Global
Com a ascensão de novas potências, como China, Índia, Brasil e África do Sul, o Sul Global passou a se fazer representar de forma mais incisiva em arenas multilaterais. O G20, criado em 1999, incorporou economias emergentes ao lado das potências tradicionais, ampliando os debates antes restritos ao G7, grupo formado por Estados Unidos, Reino Unido, Alemanha, França, Itália, Canadá e Japão. Enquanto o G7 manteve-se como farol imperial das economias desenvolvidas, o G20 permitiu certa diluição dessa hegemonia.

Dragões e Tigres Asiáticos
Outro fenômeno importante nessa reconfiguração geopolítica foi a ascensão dos chamados Tigres Asiáticos: Coreia do Sul, Taiwan, Cingapura e Hong Kong. Entre as décadas de 1960 e 1990, esses países passaram de economias pobres e agrárias a centros de industrialização acelerada, exportações de alta tecnologia e forte investimento estatal.
Sua experiência desafiou a narrativa de que o subdesenvolvimento era uma condição permanente, assim como o super desenvolvimento do gigante dragão asiático, a China, com um modelo alternativo de socialismo de mercado, voltado ao bem estar social.
Como destacam estudiosos do desenvolvimento asiático como Alice Amsden e Ha-Joon Chang, o sucesso dos Tigres Asiáticos se deu graças a uma combinação de planejamento estatal, educação em massa e seletividade nas relações comerciais.
Em desenvolvimento…
Por outro lado, muitos países do Sul Global permanecem presos a uma lógica de subdesenvolvimento historicamente construída. A teoria da colonialidade do poder, elaborada pelo sociólogo de pensamento decolonial peruano Aníbal Quijano, argumenta que o colonialismo não apenas explorou recursos e populações, mas impôs um padrão de hierarquia racial, epistêmica e econômica que ainda estrutura as relações globais. Ou seja, o colonialismo terminou formalmente, mas sua lógica continua ativa nas práticas internacionais e nas subjetividades.
Na contracorrente, emergem redes como o Brics, iniciativas de moeda própria, bancos de desenvolvimento alternativos e conferências que reafirmam o papel do Sul na formulação de suas próprias agendas. Celso Amorim, ex-chanceler brasileiro e assessor especial da Presidência, afirma: “Um dos mais significantes desenvolvimentos internacionais nos últimos 25 anos tem sido o crescimento de países do Sul”.
Ainda assim, os desafios persistem. O próprio PNUD, no Relatório de Desenvolvimento Humano de 2003, alertava para as persistentes desigualdades globais em mortalidade infantil, fome, acesso à água e educação. Para superá-las, não bastam ajustes técnicos. É preciso, como argumenta o economista egípcio Samir Amin (referência em Sul Global) uma ruptura com a lógica do “capitalismo periférico”, em que países do Sul fornecem matérias-primas e mão de obra barata enquanto permanecem dependentes de decisões externas.
Mais do que classificação geográfica, termos como Norte Global e Sul Global, Primeiro ou Terceiro Mundo, Desenvolvimento e Subdesenvolvimento são instrumentos de análise política. Carregam histórias de opressão, colonialismo, mas também de resistência, solidariedade e construção de alternativas. Entendê-los em sua complexidade é parte de qualquer tentativa de pensar um futuro justo e equilibrado.

Glossário
1. Primeiro Mundo, Segundo Mundo e Terceiro Mundo
A expressão “Terceiro Mundo” foi cunhada pelo sociólogo francês Alfred Sauvy, em 1952, em analogia aos três estados da França pré-revolucionária: o Terceiro representaria os países não alinhados à lógica bipolar entre capitalistas e socialistas. Durante a Guerra Fria, o “Primeiro Mundo” referia-se às potências capitalistas (ocidente), o “Segundo Mundo” aos países socialistas liderados pela URSS, e o “Terceiro Mundo” às demais nações . A Conferência de Bandung, em 1955, reuniu 29 países africanos e asiáticos recém-independentes, consolidando o Terceiro Mundo como força política e econômico-cultural coletiva.
2. Movimento dos Países Não-Alinhados e Bandung
O Movimento dos Não-Alinhados (MNA) nasceu em Belgrado, em 1961, como desdobramento natural da Conferência de Bandung. Líderes como Jawaharlal Nehru (Índia), Gamal Abdel Nasser (Egito), Sukarno (Indonésia) e Tito (Iugoslávia) promoveram essa terceira via neutra entre EUA e URSS. Bandung (Indonésia) já havia expresso princípios de solidariedade, cooperação e descolonização, rejeitando hegemonias externas.
3. Sul Global; cooperação Sul–Sul
Com o fim da Guerra Fria e da URSS em 1991, o termo Sul Global emergiu como herdeiro crítico do Terceiro Mundo. Nos anos 1960–80, o Sul Global consolidou-se como projeto político, econômico e simbólico, contra o subdesenvolvimento legado colonial. A cooperação Sul–Sul ganhou impulso com a Declaração de Buenos Aires (1978) e deu origem ao Plano de Ação para Cooperação Técnica entre países em desenvolvimento (Bapa). O PNUD promoveu essa agenda, reconhecendo seu caráter complementar à cooperação Norte-Sul.
Em 2003, o PNUD publicou A Ascensão do Sul, analisando a atuação política e econômica crescente dos países do Sul, prelúdio do conceito “Forjando um Sul Global”.
4. “Forjando um Sul Global” (2003, PNUD)
O Relatório de Desenvolvimento Humano de 2003, do PNUD, destacou profundas disparidades associadas à fome, mortalidade infantil e desigualdades sociais e de gênero. Introduziu conceitos-chave como “ownership” (propriedade nacional) e criticou o modelo único de desenvolvimento. Isso constituiu base para a expressão “Forjando um Sul Global”, aproximando-as do pós‑2000, e abrindo espaço para novos atores como Brasil, Índia e China.
5. DIT, G7, G20 e OTAN: integração e hierarquização global
- A Divisão Internacional do Trabalho (DIT) é central para entender como países foram historicamente inseridos na economia mundial, entre produtores de commodities e industriais.
- O G7 reúne as sete economias mais avançadas, grupo surgido no protesto ao peso crescente da OPEP nos anos 1970.
- O G20, criado em 1999, incluiu economias emergentes (Brasil, Índia, China), refletindo redistribuição de poder econômico global.
- A OTAN, desde 1949, consolidou o eixo militar ocidental liderado pelo EUA durante a Guerra Fria e adaptou-se às crises pós-URSS.
6. Tigres Asiáticos
Países como Coreia do Sul, Singapura, Taiwan e Hong Kong, chamados Tigres Asiáticos, passaram de subdesenvolvidos a economias dinâmicas a partir dos anos 1960–90, via industrialização orientada pelo Estado, investimentos em educação e exportações. São exemplo da superação da dependência e subdesenvolvimento, representando forças emergentes no Sul Global.
7. Colonialismo, colonialidade e subdesenvolvimento
Colonialismo impôs estruturas de exploração e dominação, persistentes nas ordens sociais e cognitivas: é o que a teoria da “colonialidade do poder” denuncia, com Aníbal Quijano, Mignolo e outros. O subdesenvolvimento segue sendo produto dessas estruturas, enquanto o desenvolvimento tem sido redefinido por agendas humanitárias que priorizam distribuição e capacidades locais, mais do que apenas crescimento econômico.
8. Quem está no Sul Global
A expressão “Sul Global” não designa uma localização geográfica literal, mas sim uma posição político-econômica no sistema internacional. Refere-se, geralmente, aos países historicamente colonizados, que enfrentam maiores desafios de desenvolvimento e que ocupam posição periférica ou semiperiférica na economia global.
Embora a lista possa variar de acordo com o critério adotado (PIB, IDH, participação geopolítica, etc.), segue uma lista ampla de países comumente considerados parte do Sul Global:
África
- África do Sul
- Angola
- Argélia
- Benin
- Burkina Faso
- Cabo Verde
- Chade
- Costa do Marfim
- Egito
- Etiópia
- Gana
- Guiné
- Moçambique
- Marrocos
- Nigéria
- Quênia
- Ruanda
- Senegal
- Sudão
Ásia
- Filipinas
- Índia
- Indonésia
- Irã
- Iraque
- Jordânia
- Laos
- Líbano
- Malásia
- Maldivas
- Mianmar (Birmânia)
- Nepal
- Paquistão
- Síria
- Sri Lanka
- Tailândia
- Timor-Leste
- Uzbequistão
- Vietnã
- Iêmen
América Latina e Caribe
- Argentina
- Bolívia
- Brasil
- Chile
- Colômbia
- Cuba
- Equador
- El Salvador
- Guatemala
- Haiti
- Honduras
- Jamaica
- México
- Nicarágua
- Panamá
- Paraguai
- Peru
- República Dominicana
- Uruguai
- Venezuela
Oceania
- Fiji
- Papua-Nova Guiné
- Ilhas Salomão
- Vanuatu
- Samoa
- Tonga
- Timor-Leste (às vezes incluído na Ásia)
Observações importantes:
- China e Rússia são casos complexos. Apesar do peso geopolítico e econômico, a China ainda é frequentemente incluída no Sul Global, especialmente nas discussões sobre desigualdade global e cooperação Sul–Sul. A Rússia, embora historicamente considerada parte do “Segundo Mundo” (durante a Guerra Fria), hoje participa de fóruns como o BRICS, e também é citada como parte do Sul Global.
- Turquia, Cazaquistão, Geórgia e outros países da Ásia Central e do Cáucaso também são incluídos.
- Países do Sudeste Asiático, Tigres Asiáticos e outros como Malásia, Vietnã, Filipinas e Indonésia, apesar de crescimento acelerado, ainda enfrentam desafios estruturais e são considerados parte do Sul Global.
🧭 Síntese conceitual
Termo | Origem / Contexto | Evolução / Papel atual |
---|---|---|
Primeiro/Segundo/Terceiro Mundo | Sauvy, Guerra Fria | Terceiro Mundo → Sul Global |
Movimento Não‑Alinhado | Bandung (1955), Belgrado (1961) | Persiste como voz de países independentes |
Tigres Asiáticos | Industrialização estatal | Modelos de desenvolvimento emersa |
Sul Global | Pós‑1991, pós-colonialização | Plataforma de cooperação Sul–Sul |
G7 / G20 | Economias avançadas / emergentes | Estruturas de governança econômica |
OTAN | Guerra Fria, defesa coletiva | Ainda relevante militarmente |
Colonialismo / Colonialidade | Imperialismo europeu | Entraves persistentes ao desenvolvimento |
PNUD 2003 (“Forjando…”) | Relatório de DH | Enfatizou propriedade nacional e equidade |