O governo ultraliberal de Javier Milei enfrenta uma das maiores crises desde sua posse, mergulhado em um escândalo de corrupção que atinge o coração da Casa Rosada. Ontem (27), o chefe de Gabinete, Guillermo Francos, comparece à Câmara dos Deputados para responder a 1.337 perguntas dos parlamentares sobre a situação do governo. Enquanto isso, Milei teve que deixar um ato de campanha após ser esculachado pela população, que atirou alimentos no político. Entenda na TVT News.
Embora os questionamentos formais não incluam os recentes áudios vazados do ex-titular da Agência Nacional de Deficiência (ANDIS), Diego Spagnuolo, a expectativa é de que o escândalo das propinas protagonize os debates da sessão.
A presença de Francos no Congresso coincide com o agravamento das investigações sobre o suposto esquema de corrupção na ANDIS, revelado por gravações de Spagnuolo, que foi demitido após o vazamento. Nos áudios, o ex-funcionário denuncia um esquema de cobrança de propinas de até 8% a laboratórios para garantir contratos públicos, sendo 3% supostamente destinados à secretária-geral da Presidência e irmã do presidente, Karina Milei.
A repercussão das denúncias desestabilizou o governo e abriu fissuras em seu discurso anticorrupção. Como apontou o jornalista Raúl Kollmann, do portal argentino Página12, “seis de cada dez pessoas dizem que a responsabilidade pelas coimas em Discapacidade é da administração Milei”. Desse total, 24,5% apontam Karina Milei como responsável direta.
Silêncio de Milei
Enquanto Francos tenta blindar o Executivo no Legislativo, o presidente Javier Milei mantém-se em silêncio e segue em campanha, longe da crise. Nesta terça, ele lidera uma caravana no partido de Lomas de Zamora, província de Buenos Aires, a menos de duas semanas das eleições provinciais e a dois meses das legislativas nacionais. A estratégia da Casa Rosada tem sido minimizar o escândalo como uma “operação política do kirchnerismo”, mas as evidências e a falta de respostas têm cobrado um preço político alto.
As investigações avançam. A Justiça já realizou a extração forense do celular de Spagnuolo, além de apreender aparelhos de outros envolvidos. Entre os alvos está a drogaria Suizo Argentina, que viu suas contratações explodirem durante o governo Milei. Um dos sócios, Emmanuel Kovalivker, foi interceptado tentando fugir com US$ 266 mil em dinheiro vivo; seu irmão, Jonathan, conseguiu escapar. Ambos são acusados de envolvimento direto no esquema.
O fiscal Franco Picardi também requisitou a atuação da Procuradoria de Investigaciones Administrativas (PIA) e ordenou a apreensão de imagens das câmeras de segurança de Nordelta, onde residem os empresários. A suspeita é de que parte dos valores arrecadados ilicitamente foi ocultada durante as diligências.
O silêncio do governo tem custado caro. “Que tenha passado uma semana inteira desde a divulgação dos áudios sem que Javier e Karina Milei tenham ensaiado uma defesa os deixa expostos”, observa Kollmann. “É entendível que 61,3% da população ache que Milei tem que dar uma resposta urgente.” Apenas 17,3% acreditam que o presidente não deveria se pronunciar.
Karina Milei e mais
No centro do escândalo estão não apenas Karina Milei, mas também o assessor presidencial Eduardo “Lule” Menem e a ministra de Desenvolvimento Humano, Sandra Pettovello. Em um dos áudios, Spagnuolo afirma ter conversas comprometedoras com Karina guardadas em aplicativos de mensagens. Em outro, ele acusa Pettovello de tê-lo traído politicamente após compartilhar as denúncias com Milei: “Agora salta esse quilombo e não tenho como falar”, lamenta.
A resposta oficial, até agora, tem sido evasiva. Lule Menem divulgou uma nota negando envolvimento e classificando os áudios como falsos. Martín Menem, presidente da Câmara e primo de Lule, afirmou: “Pongo las manos en el fuego tanto por Lule como por Karina”. O gesto de blindagem é visto com desconfiança pela opinião pública.
Segundo Raúl Kollmann, o núcleo duro de apoiadores libertários, que girava em torno de 30%, parece estar em erosão. “Hoje, apenas 20,6% repetem o discurso do governo de que tudo se trata de uma armação da oposição. A resposta da Casa Rosada oscilou entre o silêncio e argumentos pouco sustentáveis”, pontua o jornalista.
A crise também começa a ter impacto nas intenções de voto. Ainda é cedo para diagnósticos eleitorais definitivos, mas como explica Kollmann, “os mais propensos a se ausentar das urnas agora são parte dos eleitores de Milei que sentem que suas expectativas foram frustradas”. Com a economia estagnada e a inflação ainda alta, “a Casa Rosada tenta sustentar o índice de preços em 2% ao mês, mas com uma recessão pior que a da pandemia”, completa.
“O governo não pode explicar nada do que está acontecendo”, afirmou o deputado Pablo Todero (Unión por la Patria). E, como resumiu Spagnuolo em um dos áudios mais comprometedores: “Eles ficam com tudo, tudo… mas quem assina sou eu.”