Com o avanço dos julgamentos sobre os atos golpistas de 8 de janeiro de 2023, dois crimes têm dominado as discussões jurídicas e políticas no país. São dois crimes a que diversos réus respondem, particularmente o ex-presidente inelegível, Jair Bolsonaro, que é apontado pela acusação como mentor da tentativa de golpe. A tentativa de golpe de Estado e a tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito. Entenda na TVT News.
Quais as diferenças entre tentativa de golpe de Estado e a abolição violenta do Estado Democrático de Direito
A tentativa de golpe de Estado e a tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito. Ambos estão previstos no Título XII da Parte Especial do Código Penal, que trata dos crimes contra o Estado Democrático de Direito, e foram incluídos pela Lei nº 14.197/2021, em substituição à antiga Lei de Segurança Nacional.
Embora estejam diretamente relacionados à proteção das instituições democráticas, não se trata do mesmo crime, tampouco de condutas que necessariamente caminham juntas.
A aplicação de cada um, bem como a possibilidade de que sejam usados em conjunto, tem gerado controvérsias entre juristas e será um dos pontos centrais nos julgamentos conduzidos pelo Supremo Tribunal Federal (STF).

Golpe em poucas palavras…
Uma das principais diferenças é o que cada um dos artigos protege.
O crime de tentativa de golpe de Estado visa proteger a democracia, a soberania popular.
Ou seja, a vontade das pessoas que é a principal fonte da democracia. No caso concreto, a maioria da população elegeu Luiz Inácio Lula da Silva (PT). E justamente, supostamente Bolsonaro agiu em conjunto com organização criminosa para tentar impedir sua posse.
Já o outro crime, de tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito protege outra coisa.
Este artigo busca proteger as instituições constitucionais. A Constituição Federal é a lei máxima do país. Ela foi promulgada em 1988 por uma Assembleia Constituinte ampla, formada por 559 parlamentares eleitos após 20 anos de ditadura militar.
E a Constituição prevê a existência de instituições para o bom funcionamento da democracia. Entre elas:
- o Judiciário, incluindo, por exemplo, o Supremo Tribunal Federal (STF), o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e o Superior Tribunal de Justiça (STJ), que são órgãos do Judiciário;
- o Executivo e o Legislativo, com seus órgãos, como a Câmara dos Deputados e o Senado Federal, que são órgãos do Legislativo;
- e a Presidência da República, com seus ministérios, são órgãos do Executivo.
O que dizem os especialistas
Para o advogado Antônio Carlos Morad, titular do escritório Morad Advocacia Empresarial, a chave para compreender a diferença entre os dois crimes está no sentido do que se quer atacar ou reverter.
“Pensemos num golpe contra um governo despótico. Esse golpe seria para reestabelecer uma democracia, em tese. Portanto temos duas figuras jurídicas distintas. O inverso seria a destruição de uma democracia, exemplo, a nossa”, disse à reportagem da TVT News.
Já o criminalista Antonio Gonçalves, pós-doutor em Direitos Humanos e Filosofia do Direito, ressalta a autonomia das duas figuras penais. “São dois crimes em separado com análises e dosimetrias de pena individuais. A abolição da democracia é complementar, porém não obrigatório à tentativa de golpe ao Estado Democrático de Direito. Ambas as condutas são o cerne que permeia o processo que tramita no Supremo Tribunal Federal.”
Nesse sentido, Gonçalves destaca que embora haja sobreposição factual, a análise penal exige tratamento distinto para cada uma das condutas.

Foto: Joédson Alves/Agencia Brasil
O professor de Direito Penal da PUC-SP, Leonardo Massud, aprofunda esse ponto ao analisar a estrutura técnica dos dois tipos penais. Para ele, o artigo 359-L (abolição do Estado Democrático de Direito) pode funcionar como crime-meio, enquanto o 359-M (golpe de Estado) seria o crime-fim:
“Aparentemente, há uma sobreposição entre os crimes do artigo 359-L (abolição violenta do Estado Democrático de Direito) e 359-M (golpe de Estado), podendo sugerir um conflito aparente de normas a ser resolvido pelo julgador. Quando os tipos de sobrepõem, deve subsistir o crime fim – golpe de Estado -, uma vez que a abolição violenta do Estado Democrático de Direito parece ser um crime-meio, já que não é possível dar um golpe de Estado sem atentar contra as instituições democráticas”, disse.
O professor ressalta a diferença dos momentos no caso concreto do Bolsonaro. “Contudo, os fatos em julgamento têm dois momentos distintos: aqueles que ocorreram até 31/12/2022, quando se pretendia manter o governo que ali estava, restringindo o funcionamento dos poderes constitucionais; e a partir do dia 1º/1/2023, quando havia também o interesse em substituir o governo empossado. Em tese, é até possível ambas as imputações, mas na medida em que a própria narrativa da denúncia descreve uma como caminho para a outra, fica difícil sustentar a condenação por ambos os crimes.”
Bem jurídicos tutelados
Já a criminalista Julia Cassab, do escritório João Victor Abreu Advogados, destaca que são tipos penais distintos, com diferentes bens jurídicos tutelados.
“São dois crimes distintos previstos no Código Penal e que, embora tenham semelhanças, não se confundem nem se aplicam sempre juntos. O golpe de Estado (art. 359-M) protege a soberania popular e busca punir quem tenta depor, por violência ou grave ameaça, o governo legitimamente eleito. Já a abolição violenta do Estado Democrático de Direito (art. 359-L) tutela a ordem constitucional como um todo, punindo quem tenta abolir o Estado Democrático e impedir ou restringir o funcionamento dos poderes constitucionais.”

“Em alguns casos, um tipo penal pode absorver o outro pelo princípio da consunção, como quando a tentativa de golpe é apenas etapa para a abolição do Estado Democrático (aplica-se só o art. 359-L) ou quando a conduta se limita à deposição do presidente (aplica-se só o art. 359-M). Somente quando as ações têm propósitos independentes e atingem, ao mesmo tempo, o governo eleito e o funcionamento dos poderes constitucionais, é possível o concurso material, com aplicação de ambos os dispositivos”, completa.
A fala de Cassab reforça a importância da análise do contexto e da intenção dos agentes para definir se há concurso de crimes (punições que se somam) ou absorção de um pelo outro (consunção).
O que dizem os artigos do Código Penal:
Artigo 359-M – Golpe de Estado
- Descrição: “Tentar depor, por meio de violência ou grave ameaça, o governo legitimamente constituído.”
- Pena: reclusão de 4 a 12 anos, além da pena correspondente à violência.
- Bem jurídico protegido: soberania popular, governo eleito.
Artigo 359-L – Abolição violenta do Estado Democrático de Direito
- Descrição: “Tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais.”
- Pena: reclusão de 4 a 8 anos, além da pena correspondente à violência.
- Bem jurídico protegido: ordem constitucional, funcionamento dos poderes.
Esquema comparativo entre os dois crimes dos golpistas
Aspecto | Abolição do Estado Democrático (Art. 359-L) | Tentativa de Golpe de Estado (Art. 359-M) |
---|---|---|
Objeto protegido | Ordem constitucional e poderes constitucionais | Governo legitimamente eleito |
Ação típica | Tentar abolir o Estado Democrático, impedir/restringir funcionamento dos poderes | Tentar depor o governo por violência ou grave ameaça |
Pena prevista | 4 a 8 anos de reclusão + pena da violência | 4 a 12 anos de reclusão + pena da violência |
Aplicação conjunta | Possível, mas depende da independência dos atos | Possível, mas há risco de absorção (consunção) |
Crime-meio / Crime-fim (discussão) | Pode ser crime-meio | Geralmente visto como crime-fim |
Exemplo prático | Ataques ao STF ou Congresso sem objetivo claro de depor o governo | Invasão com objetivo explícito de derrubar o presidente |
A definição correta da imputação penal nos casos de tentativa de subversão democrática exige precisão técnica e leitura dos fatos à luz da Constituição. A tendência no julgamento do STF é aplicar ambos os dispositivos com base nos atos sucessivos e coordenados, mas o debate jurídico seguirá aceso, especialmente quando a linha entre os crimes for tênue e politicamente sensível.
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