Quase quatro décadas depois de ser instituído na Constituição Federal de 1988, o Sistema Único de Saúde (SUS) segue como a maior política pública de inclusão social do Brasil. Nascido da pressão popular e do movimento da Reforma Sanitária, o sistema transformou a saúde em direito fundamental, rompendo com décadas de um modelo excludente que restringia o atendimento médico a trabalhadores com carteira assinada. Hoje, cerca de 80% dos brasileiros dependem exclusivamente do SUS: um pilar essencial que, durante a pandemia de covid-19, demonstrou uma capacidade inédita ao liderar uma das maiores campanhas de vacinação do mundo. Relembre a criação do SUS e suas conquistas na TVT News.
De privilégio a direito
Até o fim da ditadura militar, a saúde pública no Brasil era fragmentada, desigual e, para a maioria, inacessível. A medicina previdenciária, por meio do Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (INAMPS) — uma autarquia que era administrada pelo Ministério da Previdência Social, e não o Ministério da Saúde — garantia assistência médica apenas para trabalhadores urbanos com carteira assinada. Em paralelo, as campanhas sanitárias eram iniciativas que focavam no controle de epidemias e saneamento, com ações centralizadas para combater doenças de massa.
Para se ter uma ideia, em 1980, apenas 21% da população tinha cobertura médico-hospitalar; os demais cidadãos eram tratados como “indigentes” ou dependiam de caridade.
Neste cenário, nasceu o Movimento da Reforma Sanitária Brasileira, que concebeu a saúde como dever do Estado e direito de todos. Centros como o Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes) e a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) foram laboratórios de ideias e articulação política. Nomes como Sérgio Arouca, Hesio Cordeiro e Ricardo Bruno Mendes-Gonçalves se tornaram referências da construção teórica e política da Reforma Sanitária Brasileira.

A Constituição cidadã e o SUS
O ápice da mobilização ocorreu na 8ª Conferência Nacional de Saúde, em 1986. Pela primeira vez, mais de 5 mil representantes da sociedade civil ajudaram a desenhar um sistema único, universal e descentralizado. Dois anos depois, os artigos 196 a 200 da Constituição de 1988 instituíram a saúde como direito de todos. A legislação complementar — Leis Orgânicas da Saúde nº 8.080 e nº 8.142, de 1990 — consolidou o modelo.
Desde então, o SUS se apoia em três princípios:
- Universalidade: acesso garantido a todos, sem discriminação;
- Integralidade: prevenção, tratamento e reabilitação de doenças;
- Equidade: priorizar os mais vulneráveis.
Seu funcionamento é compartilhado entre União, estados e municípios, com forte participação popular por meio de conselhos e conferências.

Conquistas concretas
Os números ajudam a dimensionar o impacto do SUS. Segundo estudo de 2021 da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico sobre os sistemas de saúde de diversos países, a expectativa de vida ao nascer subiu de 70,2 anos em 2000 para 75,9 anos em 2019. A mortalidade infantil despencou 60% em duas décadas. A Estratégia Saúde da Família tornou-se um dos maiores programas de atenção primária do mundo, aproximando equipes médicas das comunidades e reduzindo internações evitáveis.
Programas de vacinação, transplantes, distribuição gratuita de medicamentos para HIV e tratamentos oncológicos são exemplos de como o SUS ampliou o acesso e reduziu desigualdades.

Desafios persistentes
Apesar das conquistas, o SUS enfrenta um paradoxo estrutural: o Brasil gasta 9,6% do PIB em saúde, acima da média da OCDE (8,8%), mas apenas 41% desse valor é público. Ou seja, o SUS é subfinanciado. O restante provém de planos privados (30%) e desembolsos diretos das famílias (25%), o que acaba penalizando os mais pobres.
O sistema também convive com ineficiências, como baixa taxa de ocupação hospitalar (52% no Brasil contra 76% na média da OCDE), fragmentação da atenção primária e judicialização crescente, que drena recursos para decisões individuais em detrimento de políticas coletivas.
Já para o futuro, desenham-se novos desafios a serem enfrentados pelo SUS: o rápido envelhecimento populacional — a quantidade de idosos com mais de 65 anos deve saltar de 8,9% em 2017 para 21,9% em 2050 — e o avanço das doenças crônicas não transmissíveis impõem novos custos para o sistema. O sobrepeso e a obesidade já afetam mais da metade dos adultos brasileiros, e o consumo de álcool em padrões de risco quase triplicou entre 2013 e 2019. Estima-se que os gastos com saúde cheguem a 12,6% do PIB em 2040 se não houver reformas antes.

Caminhos para o fortalecimento do SUS
Organismos internacionais, como a OCDE, defendem que o Brasil “gaste mais e melhor”. Entre as propostas estão:
- Revisar subsídios fiscais a planos privados e reinvestir no sistema público;
- Fortalecer a atenção primária como coordenadora do cuidado;
- Readequar a rede hospitalar para maior eficiência;
- Centralizar compras de medicamentos e ampliar o uso de genéricos;
- Implementar um sistema formal de cuidados de longo prazo para idosos;
- Intensificar políticas contra obesidade e consumo nocivo de álcool;
- Modernizar a infraestrutura digital para integrar dados e decisões em tempo real.
Um compromisso permanente
Mais que uma política pública, o SUS é resultado de uma mobilização social rara e que continua em construção. A história mostra que seu fortalecimento depende de vigilância cidadã e investimento político. “Sem o SUS, seria a barbárie”, sintetizou um slogan que ganhou força na pandemia. Proteger e aperfeiçoar esse patrimônio coletivo é condição para que o Brasil continue a avançar na direção de uma sociedade mais justa, saudável e democrática.