Em mais um capítulo da guinada negacionista do governo dos Estados Unidos, o presidente extremista Donald Trump associou, sem apresentar qualquer evidência científica, o uso do paracetamol (comercializado como Tylenol) durante a gravidez ao aumento de casos de autismo. Durante uma coletiva na Casa Branca, nesta segunda-feira (23), Trump também voltou a vincular vacinas infantis ao transtorno do espectro autista, repetindo teorias conspiratórias já amplamente refutadas por especialistas e órgãos de saúde. Entenda na TVT News.
“Não tomem Tylenol durante a gravidez e não deem Tylenol para recém-nascidos”, afirmou o presidente. “Eles injetam tanta coisa nos bebês que é uma vergonha”, completou, insinuando que crianças são “carregadas” com até 80 vacinas de uma só vez.
As declarações foram feitas ao lado de figuras polêmicas do atual governo, como Robert F. Kennedy Jr., secretário de Saúde e Serviços Humanos, conhecido por sua trajetória como antivacina, além do comissário da FDA, Marty Makary, e de outros dirigentes indicados pelo governo.
FDA desmente presidente, mas muda rotulagem
Logo após o pronunciamento de Trump, a FDA (agência reguladora norte-americana, equivalente à Anvisa) divulgou um comunicado afirmando que não há comprovação científica de relação causal entre o uso de paracetamol e o desenvolvimento de autismo. A agência ressaltou que o medicamento continua sendo o único de venda livre aprovado para controle de febres em gestantes e que “febres altas durante a gravidez representam risco real para o feto”.
Ainda assim, o órgão anunciou que irá revisar a bula do medicamento para alertar médicos e pacientes sobre “possíveis riscos em certos contextos”. “É importante usar paracetamol apenas quando clinicamente necessário”, disse Makary, comissário da FDA, ao tentar equilibrar o discurso científico e a pressão política do governo.
A fabricante do Tylenol, a Kenvue Inc., reagiu imediatamente: “Mais de uma década de pesquisa rigorosa confirma que não há evidência crível ligando acetaminofeno ao autismo”, declarou a empresa.
Cientistas reagem: “altamente irresponsável”
A comunidade científica e organizações de defesa de pessoas com autismo reagiram com forte preocupação. A Autism Society, uma das principais entidades do setor, classificou as declarações como “alarmistas, descoladas da realidade científica e perigosas para a saúde pública”.
“Autismo não é uma condição com uma única causa. Premissas precipitadas ou exageradas podem traumatizar famílias, espalhar desinformação e minar políticas de saúde pública”, afirmou a entidade em nota.
Helen Tager-Flusberg, professora emérita da Universidade de Boston e uma das maiores autoridades em autismo nos EUA, foi enfática: “Aconselhar grávidas a não tomarem Tylenol é altamente irresponsável. O autismo é multifatorial. O que o governo está fazendo é distorcer a ciência para alimentar um pânico infundado”.
O Dr. Brian Lee, da Universidade Drexel, coautor de um dos maiores estudos sobre o tema, afirmou que “o efeito causal do paracetamol sobre o autismo não está presente”. Em seu estudo, com mais de 2,4 milhões de crianças ao longo de 25 anos, não houve correlação significativa entre o uso do remédio e o desenvolvimento do transtorno.
Retórica antivacina e autismo
Trump também voltou a defender a desinformação sobre vacinas infantis, repetindo a tese desacreditada de que elas estariam por trás do aumento nos diagnósticos de autismo.
Dr. Jake Scott, especialista em doenças infecciosas da Stanford Medicine, ironizou a fala do presidente, que comparou vacinas pediátricas a “injeções de cavalo”: “Ele não entende como vacinas funcionam. As doses são especificamente calibradas para o corpo infantil, e os protocolos de vacinação seguem rigorosos critérios científicos”.
Paul Offit, pediatra e referência em imunização no Children’s Hospital of Philadelphia, também rebateu: “O presidente não está certo sobre a ciência. Vacinas salvam vidas.”
Kennedy Jr. amplia cruzada contra a ciência
A fala de Trump ecoa promessas recentes de Robert F. Kennedy Jr., que desde abril vem afirmando que os EUA vivem uma “epidemia de autismo” e que seu departamento “irá encontrar a causa”. A meta, segundo ele, é apresentar conclusões até setembro, prazo que especialistas consideram completamente irreal.
O jornal The Washington Post revelou que cientistas e ex-funcionários da área de saúde pública veem na agenda de Kennedy um projeto ideológico de desmonte institucional, não uma iniciativa científica. Nos últimos meses, o secretário demitiu os principais conselheiros em vacinas e desativou projetos baseados em tecnologia mRNA — a mesma usada nos imunizantes contra a Covid-19.
Susan Monarez, ex-diretora do CDC (Centro de Controle e Prevenção de Doenças), afirmou ao Senado que foi afastada por “manter a integridade científica” diante das tentativas de Kennedy de interferência política nas diretrizes vacinais.
Crescimento do diagnóstico é resultado de mais acesso e conhecimento
A prevalência de autismo nos Estados Unidos cresceu de 1 em cada 150 crianças em 2000 para 1 em cada 31 atualmente, segundo os próprios Centros de Controle de Doenças. Mas isso, de acordo com especialistas, não representa uma epidemia, como alegam Trump e Kennedy.
A razão está no avanço do diagnóstico, no acesso a serviços de saúde e em uma definição mais ampla do transtorno — que passou a reconhecer diferentes níveis de funcionamento e incluir perfis antes invisibilizados.
“Hoje, mais de 5 milhões de norte-americanos estão no espectro autista. Isso não significa uma explosão de casos, mas um avanço na compreensão da neurodiversidade”, afirmou Tager-Flusberg.
Riscos reais ignorados
Enquanto a administração Trump-Kennedy foca em teorias infundadas, cientistas alertam para fatores ambientais concretos ligados ao autismo, como a poluição atmosférica, que afeta o desenvolvimento neurológico fetal. “Mas ninguém no governo está dizendo que devemos reduzir a poluição”, ironizou o Dr. Lee, da Drexel.
Além disso, médicos temem que o alarme sobre o Tylenol afaste gestantes de tratamentos seguros para febre e dor, condições que, se ignoradas, podem causar aborto espontâneo ou parto prematuro.