Em meio às discussões da COP30 em Belém, mais um capítulo trágico da longa disputa territorial no sul do Mato Grosso do Sul entre agromilicianos e o povo Guarani e Kaiowá. Cerca de 20 homens fortemente armados atacaram, na madrugada deste domingo (16), a retomada de Pyelito Kue, na Terra Indígena (TI) Iguatemipeguá I, em Iguatemi (MS). Entenda na TVT News.
O ataque, que se estendeu entre 4h e 6h, resultou no assassinato de Vicente Fernandes Vilhalva Kaiowá e Guarani, de 36 anos, morto com um tiro na cabeça. Outros quatro indígenas, entre eles dois adolescentes e uma mulher, também foram feridos por disparos de arma de fogo e balas de borracha. O momento é simbólico. Líderes discutem agenda verde na COP30 enquanto os defensores da floresta são assassinados. É o que denuncia o Conselho Indígena Missionário (Cimi), em carta aberta.
“Sem a demarcação de suas terras, os Guarani e Kaiowá se arriscam em retomadas numa região em que a agromilícia age como se estivesse em uma terra sem leis – e sem quaisquer ou poucas consequências. Os ataques são sistemáticos, permanentes e estruturais, presidente Lula”, afirma o Cimi.
O ataque contra os Guarani e Kaiowá
Segundo relatos de moradores da própria retomada, os pistoleiros tentaram recolher o corpo de Vicente para levá-lo, mas foram impedidos pelos Kaiowá e Guarani. A Funai confirmou as informações, enquanto a Força Nacional de Segurança Pública (FNSP) e equipes da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) chegaram ao local ainda pela manhã. A Polícia Federal é aguardada para realizar perícia.
Indígenas afirmam haver indícios de participação de policiais militares e agentes do Departamento de Operações de Fronteira (DOF) entre os agressores. Três dos feridos foram atingidos por balas de borracha, um tipo de munição de uso restrito a forças de segurança, elemento que reforça a suspeita.
Cerco e destruição
Após os disparos iniciais, os Kaiowá e Guarani recuaram para a aldeia de Pyelito Kue, contígua à retomada. A partir daí, os pistoleiros estabeleceram um cerco, impedindo a saída e a entrada na comunidade. Uma ponte foi derrubada para bloquear o acesso, o que atrasou a chegada da Força Nacional, que precisou entrar pelas fazendas do entorno.
“Estamos cercados. Estão atirando. Seguiram atirando até aqui na aldeia, fora da retomada, nas nossas casas. Estamos cercados. Sem chance de defesa”, relatou uma indígena Kaiowá e Guarani, que pediu para não ser identificada por segurança. O som dos disparos podia ser ouvido durante ligações feitas por moradores a autoridades, ainda antes do amanhecer.
Tratores usados pelos agressores derrubaram barracos da retomada e abriram valas para enterrar pertences das famílias: panelas, roupas, alimentos, lonas e objetos sagrados ligados à espiritualidade. Parte dos barracos foi incendiada. Uma grande quantidade de cápsulas de munição foi recolhida pelos próprios indígenas após o ataque.
Repetição da violência
O episódio é o mais grave de uma série de investidas contra retomadas Kaiowá e Guarani no estado. Desde outubro, quando retomaram uma área da Fazenda Cachoeira, sobreposta à TI Iguatemipeguá I, os indígenas afirmam ter sofrido quatro ataques, sendo o deste domingo o mais brutal.
A violência repete um padrão: há quase dois anos, em 18 de novembro de 2023, famílias de Pyelito Kue haviam sido expulsas à força de outra área retomada, na Fazenda Maringá, também sobreposta à TI. Situações semelhantes ocorreram recentemente nas retomadas da TI Guyraroká e no tekoha Passo Piraju.
Em nota, a Kuñangue Aty Guasu, a Grande Assembleia das Mulheres Guarani e Kaiowá, lembrou que a comunidade aguarda há 40 anos a conclusão da demarcação do território que abrange os tekoha Pyelito Kue e Mbaraka’y. As lideranças exigem investigação imediata do ataque e responsabilização dos envolvidos.
Uma luta de décadas
O tekoha Pyelito Kue/Mbaraka’y faz parte de um conjunto de territórios incluídos em um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) firmado em 2007 entre o Ministério Público Federal e a Funai, que previa a conclusão dos estudos em três anos. Esses estudos só foram publicados em 2013, quando a TI Iguatemipeguá I foi delimitada com 41,5 mil hectares. Desde então, contudo, o processo não avançou para a demarcação definitiva.
O território ganhou repercussão nacional em 2012, quando uma decisão da Justiça Federal de Naviraí determinou o despejo da comunidade que ocupava parte da Fazenda Cambará. Em resposta, os indígenas divulgaram uma carta coletiva:
“Decretem a nossa morte coletiva Guarani e Kaiowá de Pyelito Kue/Mbarakay e enterrem-nos aqui. Visto que decidimos não sairmos daqui com vida e nem mortos”.
A carta foi interpretada, equivocadamente, como anúncio de suicídio coletivo, gerando intensa comoção pública. Milhares de pessoas passaram a adotar “Guarani-Kaiowá” em seus sobrenomes nas redes sociais. A pressão levou o Tribunal Regional Federal da 3ª Região a suspender a ordem de despejo, garantindo à comunidade a permanência, mas em apenas um dos 761 hectares da fazenda.
Clamor por proteção
O ataque deste domingo reacende o alerta sobre a escalada de violência praticada por agromilícias na região, ao mesmo tempo em que a demarcação segue paralisada. Para os Kaiowá e Guarani, trata-se de mais um capítulo da luta por sobrevivência em um território devastado por décadas de avanço agrícola e conflitos fundiários.
Enquanto aguardam a chegada da perícia da Polícia Federal e a abertura de investigação formal, os moradores de Pyelito Kue permanecem sob tensão. O cerco foi rompido com a entrada da Força Nacional, mas o medo de novos ataques persiste.
A comunidade, que há mais de 40 anos espera pelo reconhecimento oficial de seu território tradicional, enterra mais um de seus integrantes, e cobra do Estado a proteção que, mais uma vez, falhou.
