O samba não é só um ritmo, é arquivo de dores e alegrias, cartografia de migrações, gramática de resistência e instrumento de política cultural. Comemorado no Brasil em 2 de dezembro, o Dia Nacional do Samba marca muito mais do que um gênero musical, sintetiza a presença afro-brasileira no que se transformou na identidade cultural do país. A seguir, uma viagem cronológica e por estilos que busca explicar por que, até hoje, o samba pulsa como prática cotidiana e patrimônio. Confira na TVT News.
Como surgiu o Dia Nacional do Samba (e por que 2 de dezembro)
A comemoração em 2 de dezembro tem origem legislativa local ainda na década de 1960 e associação simbólica a nomes e episódios da história do gênero. Uma versão recorrente faz referência a iniciativas de homenagem a Ary Barroso que ocorreram naquela data; outra identifica comemorações institucionais e eventos de divulgação do samba realizados em torno de 2 de dezembro, data que acabou se consolidando nacionalmente como o Dia do Samba. Essa oficialização é, na prática, um processo de difusão cultural sustentado por rádios, museus e movimentos de sambistas.

Raízes: África, Recôncavo baiano e a invenção do círculo
O samba nasceu de processos culturais afro-diaspóricos. As formas populares de canto, palmas, percussão e dança circulares, o que hoje chama-se de samba de roda, estão documentadas no Recôncavo Baiano desde o século XIX e guardam nexos com ritmos e práticas trazidas por populações africanas escravizadas. Esses repertórios foram se transformando em contextos urbanos distintos quando migrantes e deslocados chegaram às grandes cidades, sobretudo ao Rio de Janeiro, nas primeiras décadas do século XX. A genealogia do samba é portanto múltipla: sambas de terreiro, de roda e de partido alto convivem com processos de hibridização (com polca, maxixe, lundu e outros ritmos) que deram à música sua forma moderna.
Marco fonográfico do Samba
Um marco frequentemente citado para a popularização do samba urbano é a gravação de “Pelo Telefone” (1917), apontada por instituições culturais como um dos primeiros registros comerciais associados ao samba. A partir daí, a expansão do rádio e da indústria fonográfica (anos 1920–1940) ajudou a transformar repertórios locais em um gênero reconhecível nacionalmente, ao mesmo tempo em que as escolas e os espaços das chamadas “Pequenas Áfricas” do Rio consolidavam circuitos sociais e artísticos decisivos para o samba carioca.
Samba, Estado e identidade nacional
Ao longo do século XX o samba passou de expressão criminalizada pela moral dominante para ferramenta simbólica de construção do “Brasil”, processo em que o Estado, especialmente no período de Getúlio Vargas, instrumentalizou e celebrou alguns tipos de samba (como exaltação) para fins nacionalistas, ao mesmo tempo em que o gênero servia de canal de crítica social e de afirmação negra nas periferias. Essa ambivalência, entre legitimação oficial e resistência periférica, é central para entender o lugar do samba na sociedade brasileira.

Os principais estilos do samba
Samba de roda (Bahia)
Origem: Recôncavo Baiano, canto, palmas, dança em roda. Características: canto improvisado, repiques, interação entre cantores e dançarinos. Patrimônio cultural imaterial e matriz para muitos outros sambas. Representa a matriz comunitária e ritualística do gênero.
Samba de terreiro / de matriz africana
Associado a práticas religiosas afro-brasileiras e a encontros nos terreiros; ritmo e função ligados a celebrações e ritos, além de recreação comunitária.
Samba carioca / urbano (Estácio, Praça Onze, Pequena África)
Formação no Rio de Janeiro no início do século XX; instrumentação com pandeiro, tamborim, surdo, cavaquinho e violão; desenvolvimento de escolas de samba, rodas e casas de samba urbanas. Foi o núcleo que consolidou o samba como indústria cultural.
Samba-enredo / de escola de samba
Criação voltada para o desfile carnavalesco: letra e melodia pensadas para narrar um enredo e mobilizar uma bateria e centenas de componentes. É ritmo do espetáculo e peça central da cena carnavalesca brasileira.

Samba-canção
Versão mais lenta e melódica do samba, com letras românticas e sentimento de “dor-de-cotovelo”. Ganhou força nas décadas de 1930–1950 e tem intérpretes consagrados que transitaram entre rádio e discos.
Partido-alto
Vertente de improvisação coletiva e desafio entre cantores; forte ênfase no verso improvisado, no compasso sincopado e na interação com o “refrão”. Tem origem nas rodas de samba e em tradições de toque comunitário.
Samba de breque
Caracteriza-se por “breques”, paradas bruscas onde o cantor fala ou comenta o enredo com humor ou crítica. Exemplo de intérprete célebre: Moreira da Silva.
Pagode (origem no fim do século XX)
Movimento de renovação do samba surgido nos anos 1980 a partir de rodas de músicos no Rio (Caxias, etc.) e posteriormente transformado em produto cultural de massa; instrumentos próprios (repique, tantã, banjo no samba de pagode) e linguagem mais coloquial.
Samba de gafieira / de salão
Vertente de dança de salão, com coreografias específicas (gafieira) e interação casal-dançante; vínculo com o maxixe e com salões urbanos.
Fusões e formas híbridas: jazz, rock, reggae, bossa nova
O samba também se reinventou ao se aproximar de jazz, rock, ritmos baianos (samba-reggae) e arranjos sofisticados que deram origem à bossa nova — todas manifestações que mostram a plasticidade do gênero. Essas hibridações ampliaram o mapa sonoro do samba e sua difusão internacional.
Protagonistas
Cartola, Clara Nunes, Noel Rosa, Nelson Cavaquinho, Lupicínio Rodrigues, Ary Barroso, Dona Ivone Lara, Paulinho da Viola, Beth Carvalho, Martinho da Vila e tantos outros foram vozes e criadores que traduziram a diversidade do samba. Instituições como o Museu do Samba (Mangueira/RJ), a Biblioteca Nacional e arquivos institucionais preservam acervos, discos e depoimentos que ajudam a reconstituir trajetórias e circuitos. Exposições recentes (por exemplo, sobre as “Pequenas Áfricas”) têm mostrado com força o papel das comunidades afrodescendentes na invenção e legitimação do gênero.

O samba como patrimônio e políticas de preservação
O reconhecimento público do ritmo como elemento de patrimônio (diversas matrizes do samba foram declaradas patrimônio pelo IPHAN em 2007), e a existência de museus e acervos, são respostas institucionais a uma demanda de preservação de práticas que, por muito tempo, foram marginalizadas. Ao mesmo tempo, persistem tensões: frequência de remoções urbanas, precariedade das rodas e a mercantilização de algumas formas do samba colocam desafios à sua reprodução comunitária.
Rádios, shows, rodas de rua e programações em museus e centros culturais costumam marcar 2 de dezembro. Escolas de samba, velhas guardas e artistas realizam eventos comemorativos; o Museu do Samba e iniciativas locais produzem programação educativa e expositiva. Em muitas cidades a data serve também para debates sobre políticas culturais, direitos dos artistas e preservação de patrimônios imateriais.

Samba e identidade
O samba é uma língua pública que diz de violência e celebração, de mestiçagem mas também de persistência negra diante da exclusão. É um arquivo vivo, canções que contam histórias familiares, causos políticos, memórias urbanas, sons de resistência e modos de amar. No dia 2 de dezembro, ao festejar o ritmo, celebrama-se também as rodas, os terreiros, as escolas e as pessoas que mantêm esse arquivo pulsante. Celebrar o dia é reconhecer que uma parte essencial da cultura brasileira é obra coletiva, histórica e em aberto.
