Um novo e contundente relatório produzido pela Data-Pop Alliance em parceria com o ODI Global expõe, com riqueza de dados e relatos diretos, como a violência digital tem se tornado um dos maiores obstáculos à participação de mulheres na política brasileira. O estudo analisou mais de 6 mil mensagens em grupos do Telegram e realizou 28 entrevistas com mulheres eleitas e lideranças de 13 partidos — da esquerda à direita — revelando um padrão sistemático de ataques baseados em misoginia, racismo, transfobia e estereótipos coloniais. Leia em TVT News.
A pesquisa, de 77 páginas, mostra que essa violência não só é profundamente estruturada por normas de gênero e raça, mas também amplificada pelas dinâmicas próprias das plataformas digitais e agravada por lacunas institucionais dentro dos partidos. A conclusão central é inequívoca: a violência digital contra mulheres na política não é um problema individual — é uma ameaça direta à democracia.
Racismo, misoginia e transfobia moldam a lógica dos ataques
Os dados do estudo confirmam que a violência digital atinge todas as mulheres, mas não da mesma forma. As pesquisadoras identificam padrões claros:
- Mulheres negras enfrentam ataques racializados, que combinam misoginia e racismo.
- Mulheres indígenas sofrem agressões que evocam estereótipos coloniais e desumanizantes.
- Mulheres trans lidam com violências intensificadas por transfobia e pressões sobre “conformidade” de gênero.
- Mulheres brancas são frequentemente alvos de ataques baseados em etarismo e policiamento moral.
‘Um dos colegas de um partido da oposição falou uma frase de praxe: ‘Ah, ela nem é índia de verdade, veio tomar posse de
iPhone, não de arco e flecha…’’ Mulher indígena, esquerda.‘Os caras mandam [fotos de] pinto para você, mandam fotos deles pelados, ficam fazendo propostas dessas coisas. Toda
eleição tem.’ Mulher branca, direita‘Não é correto uma mulher ser destruída, ser destroçada, ser enlouquecida, ser adoecida, ser perseguida, ter seus filhos
perseguidos, a sua família perseguida, não pode ser esse o preço a pagar, não é esse o preço nem que o [nome de um
homem político influente], que é um bandido, paga. Ninguém paga esse preço, quais homens de esquerda pagam esse preço? Nem o [nome de um homem político influente] paga esse preço. Então esse é o preço comum [para as mulheres], não é um preço raro.’ Liderança partidária, esquerda
Apesar das especificidades, há um fio comum: todas são confrontadas por mensagens que tentam recolocá-las num “lugar” doméstico e subalterno, deslegitimando sua autoridade. Como resume o release do estudo, essas narrativas reforçam “ideias misóginas de que seu ‘lugar’ é doméstico, emocional ou subordinado”, impedindo que sua presença no poder seja vista como legítima.
Para Julie Ricard, coordenadora da pesquisa, o que aparece nos dados está longe de ser “ódio solto”:
“Não se trata de ódio solto na internet, mas de padrões muito claros de ataque: mulheres negras, indígenas, trans e brancas são atingidas de formas distintas, sempre a partir de normas de gênero e raça profundamente enraizadas.”
Visibilidade é o principal gatilho — não as eleições
Um dos achados mais contundentes do relatório desmonta a ideia de que os ataques digitais se concentram nos períodos eleitorais. Segundo o estudo, a visibilidade importa mais do que o calendário eleitoral.
Mulheres são atacadas quando:
- ganham destaque institucional,
- assumem cargos de liderança,
- entram em conflitos públicos,
- defendem pautas consideradas “polarizadoras”,
- ou participam de eventos de grande repercussão.
Isso significa que a violência é uma espécie de custo permanente para quem ousa ocupar o debate público. Nas palavras de Ricard:
“As agressões não começam nem terminam na eleição: elas se intensificam quando uma mulher ganha projeção (…). O preço de participar da política, para muitas mulheres, é viver em estado permanente de vigilância e estresse.”
Já Anna Spinardi ressalta que a engrenagem central da violência é justamente o reconhecimento público:
“Quanto mais uma mulher ocupa espaços de poder, lidera debates ou ganha projeção pública, mais ela é atacada.”
Extremistas organizam ataques — e partidos também reproduzem violência
O levantamento no Telegram identificou 1.165 ataques diretos entre as mais de 6 mil mensagens analisadas. Muitas delas partiram de redes coordenadas ligadas à extrema-direita, grupos conspiracionistas e neonazistas.
Mas a violência não vem só de fora. O estudo mostra que dinâmicas internas nos partidos — independentemente do espectro político — também funcionam como mecanismos de controle e silenciamento. As entrevistadas relataram episódios de:
- vazamento de dados pessoais por aliados,
- sabotagens internas,
- exclusão de espaços estratégicos,
- e ataques intrapartidários.
Essa violência, portanto, atravessa todo o espectro político. E funciona tanto como arma ideológica quanto como ferramenta de controle institucional.
Adoecimento, medo e custos materiais: os danos vão muito além da internet
A violência digital produz impactos profundos e em cascata. O relatório documenta episódios de:
- crises de ansiedade, depressão e exaustão;
- ameaças a familiares;
- necessidade de contratar segurança e mudar rotinas;
- afastamento de atividades públicas e autocensura;
- desistência de mandatos e candidaturas.
Spinardi aponta que esses efeitos não se restringem ao indivíduo:
“A violência digital adoece, gera medo, impõe custos materiais e afasta mulheres da vida pública, minando diretamente a democracia.”
Partidos oferecem “soluções analógicas para um problema digital”
O estudo analisou estatutos e documentos dos 20 partidos com representação no Congresso e encontrou um vazio estrutural: nenhuma legenda possui políticas específicas para enfrentar a violência digital de gênero.
Partidos de esquerda mencionam “gênero” com mais frequência, enquanto apenas um terço dos partidos de direita utiliza esse termo — preferindo referências genéricas a “mulheres”. No entanto, em nenhum caso há protocolos claros para monitoramento, prevenção ou resposta a ataques digitais.
A avaliação das pesquisadoras é contundente:
“Hoje os partidos ainda respondem à violência de gênero online com soluções analógicas para um problema digital.” (Ricard)
Violência digital contra mulheres: uma ameaça direta à democracia
O diagnóstico geral é alarmante. A violência digital, amplificada por algoritmos, ambientes permissivos e impunidade, reduz a pluralidade no debate público, silencia vozes dissidentes e aprofunda desigualdades de gênero e raça.
A conclusão da pesquisa é categórica: “A violência digital contra mulheres na política constitui ameaça sistêmica à democracia.”
Com dados inéditos, o estudo reforça que enfrentar essa violência não é apenas proteger indivíduos — é proteger o próprio funcionamento democrático.
