A cátedra de Marçal ou antipolítica asinina

Para o professor Paulo Niccoli, Marçal consegue ser pior que Bolsonaro e ameaça o regime democrático
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Meme produzido por internauta. Foto: Reprodução

Depois de desistir da candidatura à presidência em 2022, há pelo menos um ano, Pablo Marçal projetava sua visibilidade na eleição à prefeitura paulistana de 2024. Foram inumeráveis vídeos, ou pequenos “cortes”, supostamente e eleitoralmente despretensiosos para divulgar suas palestras para uma multidão num auditório. Multidão que lembra certo aforismo de Nietzsche que anunciava ovelhas em pasto verde. Nos vídeos, Marçal apresenta ferramentas motivacionais, estratégias marketeiras, empreendedorismo, entre outras informações tipicamente instrumentalizadas por coachs, porém ofuscadas pelas suas verborragias.

Entre os “cortes” divulgados nas redes sociais, sobretudo Youtube, Tiktok e Instagram, há falas nas quais, de modo narcísico, autocontempla sua inteligência, autocontrole, seu enriquecimento e múltiplos talentos, além de estratégias de como vencer tubarões no mar com socos, ditos de como acalmou um piloto de helicóptero durante uma pane, seu veloz aprendizado na natação e maratona a ponto de, segundo ele, de um dia para outro, de aprendiz ter se tornado professor.

Um de seus “alunos”, jovem de 26 anos, sofreu uma parada cardíaca após uma maratona surpresa promovida pelos cursos de Marçal. Suas palestras consideradas mais disputadas, cotadas a partir dos preços de Iphones de última geração, prometem abundância e prosperidade financeiras, desde que se siga rigorosamente os sofísticos ensinamentos do mestre. Houve milhares de visualizações, compartilhamentos e comentários de seus “cortes”, ora por internautas que ironizavam seu estilo Chuck Norris, tornando-o meme para os que são mais críticos, ora convertendo-se em referência e influenciador para a existência daqueles que almejam desesperadamente o sucesso a partir dos ensinamentos estultos do coach.

Sendo motivo de piadas ou levado a sério, Marçal adquiriu potente capital simbólico, acumulando milhares de seguidores nas redes e outros tantos milhares que passaram a vê-lo como demagogo. Foi o cenário que projetou visibilidade à candidatura à prefeitura de São Paulo pelo PRTB, partido de escassa relevância para a política brasileira e sem tempo de TV durante o horário eleitoral.

Outra estratégia utilizada por Marçal foi tentar projetar a imagem como sucessor do hoje inelegível ex-presidente, Jair Bolsonaro. A relação entre ambos é conturbada, pois Bolsonaro apoia oficialmente o atual prefeito Ricardo Nunes (MDB), embora tenha feito nas redes sociais tanto elogios quanto ataques a Marçal, que o considera um ídolo. Trata-se de buscar incorporar e ter como herança o capital político deixado nas últimas eleições presidenciais por Bolsonaro, que obteve cerca de 49% dos votos válidos, assim como ocupar o vácuo de liderança deixado para os órfãos da extrema-direita brasileira. Marçal é um dos nomes cotados para ser sucessor, líder e candidato da extrema-direita nas eleições para presidente de 2026.

Sem tempo de TV e diante dessa relação dúbia com Bolsonaro, Pablo Marçal apresenta negativas inovações diante dessas dificuldades no que diz respeito à participação nos debates eleitorais, observados nas emissoras Bandeirantes, Gazeta, Cultura e RedeTV. Com atitudes distópicas, aboliu a política e promoveu gestos esdrúxulos, capturados das elevadas audiências dos chamados “barracos” presentes em programas de reality shows, podcasts e discursos de ódio presentes nos comentários realizados pelos “haters” nas próprias redes sociais. Capturou e transferiu todas estas linguagens aos debates políticos na TV. São comportamentos tolos similares aos de adolescentes na puberdade. Marçal normatizou o uso de palavrões e fake news aos adversários, além de criar apelidos depreciativos a eles, sobretudo aos candidatos Boulos (Psol), Ricardo Nunes (MDB), Datena (PSDB) e Tabata Amaral (PSB).

Nos debates eleitorais, Marçal se esquiva e pouco apresenta propostas. Salvo engano, até agora apenas nos informou – e muito mal – sobre a construção de teleféricos nas periferias, projeto considerado geograficamente inviável por especialistas, propôs a construção de um prédio de um quilometro de altura para atrair turistas, e sugere introduzir o que denomina como “mentalidade milionária” à população de São Paulo como forma de erradicar a pobreza.

Sem propostas de governo plausíveis ou sólidas, quando questionado sobre elas, desvia o assunto e procura direcionar suas falas ao ataque de seus adversários. É comum vê-lo gesticular o “M” olhando para a câmera, oferece gritos irracionais aos demais candidatos, e enfim, professa todo tipo de estupidez sem fundamento ou comprovação, ou mesmo resgata processos judiciais dos quais seus oponentes foram absolvidos.

Sobre Boulos criou o falso factoide de que seria usuário de cocaína; Tábata Amaral é chamada de comunista (nunca foi a visão da esquerda sobre esta candidata); Datena foi acusado de assédio, mesmo após o processo ter sido extinto pela justiça em 2019. Ao insistir no tema no debate da Tv Cultura, provocando o candidato do PSDB, mesmo depois dele ter dito sofrer drama familiar com a acusação e perder a sogra que sofrera três AVCs, Marçal insistiu no confronto verbal, elevando o tom de voz. Disse que Datena foi covarde e nem foi “homem suficiente” por não ter tido coragem de agredi-lo no anterior debate da Tv Gazeta, quando Datena, próximo de atacá-lo, recuou. No debate realizado dia 15 de setembro na TV Cultura, Marçal enfim foi agredido, depois de muito provocar, sendo atingido por uma cadeira lançada por Datena. O debate foi interrompido, a TV Cultura suspendeu o debate, o mediador solicitou intervalo comercial, talvez o mais longo da história dessa emissora. Após longos minutos e apenas depois de a situação no estúdio se acalmar, o debate voltou ao ar com a informação de que Datena havia sido expulso devido agressão e Marçal levado ao hospital.

O que se seguiu e foi divulgado no dia seguinte, foi a falsa informação nas redes sociais de que Marçal havia quebrado a costela e que estaria na UTI. Descobriu-se com o laudo médico do hospital que a agressão não foi tão grave, embora injustificável tenha sido a atitude violenta e descontrolada de Datena. Os assessores de Marçal produziram vídeos postados nas redes sociais do polêmico candidato sendo levado ao hospital em ambulância e com oxigenação. A violência não caracterizou consequências graves às condições físicas de Marçal.

Como resultado, Datena adquiriu mais seguidores nas redes e os admiradores de Marçal viram com maus olhos a simulação e a ficção de que a situação seria gravíssima. Enfim, um barraco digno de reality shows com performances animalescas regidas por latidos e onomatopeias migraram para os debates eleitorais. A audiência televisa dos debates cresceu como nunca e a qualidade das discussões e comportamentos civilizados despencaram como sempre.

As posturas de Marçal assemelham-se ao que o filósofo francês Guy Debord denomina como “sociedade de espetáculo”. Isto porque seus seguidores e eleitores são guiados pela força persuasiva de seu discurso agressivo e vazio, ou seja, remete à espetacularização com o uso de meios de comunicação que faz com que seus admiradores sejam guiados pelas emoções e não pela racionalidade, tomando o aparente como verdadeiro, o tolo visto como sábio.

Marçal não é um político, senão a imagem ou aparência de uma coisa. Mas qual coisa? Marçal é uma personagem. O que o diferencia e o torna um negativo inovador para a história das eleições e dos debates eleitorais não são as ideias políticas, pois são ausentes. A política na democracia é a arte de conviver com a divergência, dialogar com aqueles que pensam de modo diferente, opor-se a certas ideias e ideologias, sem que isto signifique o desejo de eliminá-los ou matá-los. Por isto, a política é uma arte e um milagre, Marçal é um pesadelo, uma praga política que poderá deixar marcas irreparáveis ao debate político. Talvez tenha criado uma tendência estúpida, uma escola ou cátedra antipolítica para as próximas eleições, influenciado outros e novos candidatos e incitando a violência verbal e física de seus eleitores e oponentes nas ruas.

É comum vermos em debates eleitorais acusações juridicamente fundamentas ou sem fundamento, aqui e acolá certos gritos e provocações, porém sucedido por questionamentos mais pragmáticos e respostas mais contidas dos candidatos. Marçal é disruptivo em relação a todo e qualquer candidato, mesmo Jair Bolsonaro, pelo fato de que é inepto para propor. No entanto, muito hábil para monopolizar todas as falas a partir de acusações, apelidos, xingamentos e falsas acusações. Marçal é incapaz de se pronunciar sem ataques verbais selvagens ou autovalorização da riqueza e suposta inteligência.

Marçal é incapaz de ser político. Herdeiro (des)intelectual de Bolsonaro, Marçal consegue ser pior que seu mentor. Bolsonaro como falseador da democracia, Marçal é a tragédia que ameaça o regime democrático.

Por Paulo Niccoli Ramirez

Sobre o autor

Paulo Niccoli Ramirez tem graduação, mestrado (sociologia) e doutorado (antropologia) em Ciências Sociais pela PUC-SP, além de graduação em Filosofia pela USP. Leciona na Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP) desde 2013 e na Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM) desde 2016. Promove cursos na Casa do Saber, fornece entrevistas e escreve artigos para diversos meios de comunicação dentro e fora do Brasil, com o Bom para Todos, da TVT. É autor dos livros Sérgio Buarque de Holanda e a dialética da cordialidade (Educ, 2011), Ética, cidadania e sustentabilidade (SENAC, 2021), O Golpe de 2019 na Bolívia (Coragem, 2023), entre outros ensaios e artigos acadêmicos em livros e revistas direcionados às Ciências Humanas.

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