Análise: cobertura do furacão Milton coloca profissionais da notícia em risco

CNN Internacional expõe repórteres ao risco nos locais de maior perigo para relatar passagem do furacão Milton
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Reprodução da tela da CNN durante cobertura do furacão Milton

A cobertura do canal de notícias CNN sobre a passagem do furacão Milton, anunciado previamente pelas autoridades norte-americanas como um dos mais “catastróficos” e “perigosos” da história, na noite de 9 de outubro, foi impactante por ter exposto os próprios trabalhadores a toda sorte de riscos.

Desde as primeiras horas da noite de 9 de outubro – e durante a madrugada – os jornalistas e cinegrafistas da CNN estavam distribuídos pelos locais de maior perigo, ensopados pela chuva torrencial, sem condições de abrir os olhos por conta dos ventos e sujeitos a todo o tipo de acidentes, desde quedas de árvores, fios, prédios e estruturas, até a serem jogados ao chão ou às águas pelas ventanias. 

Apesar de parecer, à primeira vista, um serviço prestado pela emissora de relatar a notícia onde ela acontece, as cenas dos profissionais sendo engolidos pelo furacão chocava pela exposição de trabalhadores a um risco desnecessário. 

O episódio serve para debater os limites do jornalismo para contar notícias e o quanto os trabalhadores da comunicação são explorados e precarizados em nome dos critérios de noticiabilidade 

Furacão Milton era anunciado como mais perigoso da história: vida ou morte 

Durante os dias anteriores à chegada do furacão Milton à Florida, as autoridades norte-americanas emitiram diversos avisos sobre o risco de permanecer nos locais por onde a tormenta ia passar.  

O Centro Nacional de Furacões (NHC) dos EUA descreveu Milton como um grande furacão “catastrófico” e “perigoso”, com ventos de 260 Km/h. A agência Reuters informou que o furacão Milton traria “uma tempestade mortal de 3 metros ou mais inundação”.  Ainda de acordo com a Reuters, as autoridades dos EUA “alertaram as pessoas para se retirarem das zonas de perigo ou correrão risco de morrer”. 

A própria CNN trouxe o aviso da vice-presidente e candidata democrata  Kamala Harris: “Furacão Milton ‘é diferente de tudo que já vimos antes”, diz Kamala Harris à CNN”.  O Presidente Biden anunciava o furacão como o pior da história e alertava: “é caso de vida ou morte”.

A prefeita de Tampa, Jane Castor,  usou a expressão “se você estiver nela, basicamente estará no seu caixão” ao se referir às pessoas que não queriam deixar as casas por onde passaria o furacão para se dirigir a abrigos. 

E foi justamente nestas cidades e regiões de maior perigo que a CNN colocou equipes de reportagem para relatar, ao vivo, os estragos que o furacão Milton iria provocar. 

Equipes da CNN enfrentando o furacão Milton 

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Reprodução da tela da CNN durante cobertura do furacão Milton

O apresentador Anderson Cooper, do programa Anderson Cooper 360°, da CNN, ficou em Bradenton, próximo a Tampa, na Florida, local por onde o furacão passaria com enormes chances de destruição. Cooper comandava a equipe de repórteres e cinegrafistas em Tampa, Punta Gorda, St. Petersburg e Sarasota. Todas localidades que deveriam ser evacuadas, com a população em abrigos, devidamente protegidas. 

Mas, talvez numa tentativa de demonstrar que o jornalista tem de ir onde a notícia está, ao invés de usarem recursos da tecnologia, como câmeras robôs, ou equipamentos de filmagem instalados em locais estratégicos, a CNN colocou os jornalistas e cinegrafistas enfrentando o furacão. 

Alguns repórteres mal conseguiam parar em pé, ensopados. Muitas vezes eles não conseguiam ouvir Anderson Cooper perguntando, tal era a velocidade do vento e a intensidade da chuva. Não estavam, literalmente, no olho do furacão pois essa é uma área em que a tempestade é menos forte, mas estavam na parede do olho, sofrendo o pior da tormenta. O repórter em St. Petersburg circulava por uma cidade em que a energia ainda estava ligada, passando por postes e cabos chacoalhados. 

O próprio Anderson Cooper foi atingido por um pedação de isopor durante uma das passagens. Ele tratou com certo deboche: “isso não foi nada bom”. Conforme a intensidade do vento aumentava e as ondas perto do píer ficavam maiores, ele dizia que, “daqui a pouco sairia dali”. Mas continuava. E a equipe de repórteres também. Em torno dele, as árvores e galhos envergavam.  

Foram duas a três horas de “breaking news”, a famosa expressão da CNN para notícias de última hora. E um espetáculo ao vivo que parecia anunciar um jornalista ou um cinegrafista atingido por um destroço voador ou engolido pela mistura de vento e água. 

Tudo pela audiência. Será só busca por audiência? 

Em busca da critérios de noticiabilidade 

O recurso de colocar repórter ao vivo  em meio a conflitos e situações de perigo não é novo na CNN. O canal de notícias ganhou notoriedade em 1991, na cobertura da Guerra do Golfo com Peter Arnett no alto do hotel em Bagdá descrevendo os primeiros e mais intensos bombardeios.  

Há perigos na guerra. E há regras, em tese (que o digam Israel e a Faixa de Gaza). Sempre em tese, um correspondente devidamente identificado com Press não pode ser alvo intencional. Essas regras, com a Natureza, não existem. 

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Reprodução da tela da CNN durante a Guerra do Golfo, em 1991

Não há garantias que os repórteres e cinegrafistas não pudessem ser atingidos por troncos voadores, ou que fossem eletrocutados pelos cabos despregados, ou ainda que não fossem arrastados pelos ventos que passavam dos 100 Km/h.  

Os avisos foram dados. Era uma tempestade “monstruosa” e caso de “vida ou morte”. O que levou a CNN a optar pelo risco de perder seus trabalhadores ao invés de usar as dezenas de recursos tecnológicos que hoje estão à disposição. 

Não é só audiência. Ou também é pela audiência, mas não só para ganhar dos demais veículos. Para ganhar do ambiente de desinformação. Colocar o repórter ao vivo, junto com o cinegrafista, ambos correndo o risco de serem feridos soou como necessidade de comprovar que o veículo estava lá, que não era imagem criada por IA. 

Afirmar, no texto jornalístico, que o veículo fez a reportagem, que colheu as aspas, é praxe dos manuais de redação. Essa é uma das restrições formais a que os textos jornalísticos são submetidos. Como mostra a professora Ana Paula Goulart Ribeiro no artigo “Jornalismo, literatura e política: a modernização da imprensa carioca nos anos 1950”: ao utilizar técnicas de redação para relatar os acontecimentos, a imprensa “passava a ser reconhecida como um gênero de estabelecimento de verdades.” 

O professor Marques de Melo afirma no livro Gêneros Jornalísticos no Brasil que o gênero informativo descreve “a realidade”, ou seja, conta o que está acontecendo, relata os fatos a partir dos parâmetros de noticiabilidade –  o que é novo, o que é próximo, o que é relevante.  

Esse tripé do que transforma um acontecimento em notícia (novidade, proximidade e relevância) é afetado por outras forças, como explica o professor Jorge Pedro Sousa. Afirma o professor na obra Teorias da Notícia e do Jornalismo: “as notícias são um artefato construído pela interação de várias forças: das pessoas, do sistema social, da ideologia, da cultura, do meio físico e tecnológico e da história. Estes fatores, associados à definição que cada um dá aos valores-notícia, mostram porque as notícias são como são”. 

O que transforma um fato em notícia vai depender da ação pessoal do jornalista (ou seja, da formação e visão de mundo do profissional), do veículo em que a notícia vai ser veiculada, da ideologia dominante e da influência dos recursos tecnológicos disponíveis para captar os acontecimentos e relatá-los ao público. 

No caso dos estragos do furacão, uma câmera com recursos instalada em local estratégico geraria imagens que poderiam ser explicadas por um especialista no estúdio.  

Mas, diante do ambiente de desinformação (as chamadas fake news), o fator humano foi introduzido para reforçar a novidade, a relevância, a proximidade: os profissionais estão sentindo, na pele, as consequências do furacão Milton.  

Reprodução da tela da CNN durante a passagem do furacão Milton

O risco às vidas humanas fica em segundo plano diante de uma glamourização artificial do relato jornalístico. Não há nenhum glamour em colocar profissionais em condições precárias de trabalho em nome do aumento da credibilidade da informação. Se as tecnologias evoluem em favor do jornalismo que sejam utilizadas para preservar os trabalhadores da notícia e não só para produzir textos de forma mais ágil.  

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Sobre o autor 

Alexandre Barbosa é editor do site TVT News, professor contratado do CJE-ECA-USP e do Centro de Estudos Latino-americanos sobre Comunicação e Cultura (CELACC-USP). Pós-doutor em Ciências da Comunicação (Unesp), Doutor em Comunicação (ECA-USP), Mestre em Jornalismo (ECA-USP), Especialista em Jornalismo Internacional (PUC-SP), Jornalista (Umesp). Autor do livro Por uma teoria latino-americana e decolonial do Jornalismo (Editora Frutificando, 2023). 

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