Argentina: Suprema Corte aprova extradição de ex-militante italiano e aprofunda perseguição política

A Suprema Corte da Argentina tornou-se mais um braço executor para a eliminação de direitos, alinhando-se a Milei. Por Carla Perelló
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Suprema Corte de Justiça da Argentina decidiu pela extradição do militante e ativista social italiano Leonardo Bertulazzi. Foto: Arcervo/Cortesia

A Suprema Corte de Justiça da Argentina tornou-se mais um braço executor para a eliminação de direitos da cidadania, alinhando-se ao governo de extrema direita de Javier Milei. Isso ficou evidente no caso de Leonardo Bertulazzi, refugiado italiano que, a pedido de Giorgia Meloni, será extraditado após um julgamento realizado à revelia. Entenda na TVT News.


Por Carla Perelló, para a TVT News

Na terça-feira, 1º de julho, a Suprema Corte de Justiça da Nação decidiu pela extradição do militante e ativista social italiano Leonardo Bertulazzi, residente na Argentina há mais de 23 anos. A Polícia Federal e a Interpol executaram a decisão imediatamente: foram até sua casa na Cidade de Buenos Aires, onde cumpria prisão domiciliar por conta da idade, e o levaram para aguardar o cumprimento do pedido de extradição feito pelo governo italiano de Giorgia Meloni. “Com essa decisão, a Corte rebaixa sensivelmente a vigência da Convenção sobre Refugiados”, denunciou em entrevista à TVT o advogado especializado em casos de refúgio, Rodolfo Yanzón. Organizações de direitos humanos como as Mães da Praça de Maio – Linha Fundadora e a Assembleia Permanente pelos Direitos Humanos pretendem levar o caso à Corte Interamericana de Direitos Humanos.

Leo tem 73 anos, é luthier e designer gráfico, além de um vizinho e companheiro muito querido. Ele havia sido preso em 29 de agosto do ano passado, em uma operação inédita coordenada pelas forças dos Estados argentino e italiano para suspender seus direitos e garantias, após o governo argentino revogar, de forma arbitrária e repentina, o status de refugiado que lhe havia sido concedido em 2004 pela Comissão Nacional para Refugiados (CONARE) e reconhecido pelo ACNUR. Dizem que ele é “o terrorista foragido mais procurado do mundo”, mas desde 1980 é perseguido pelo Estado italiano, que não lhe garantiu o direito à ampla defesa em um processo justo, sendo julgado à revelia e condenado com base em declarações de desconhecidos.

Antes de se exilar do governo ultranacionalista e filofascista da Itália, Leo sempre viveu com sua família e nunca entrou na clandestinidade. Na década de 1970, como jovem, participou do movimento popular de esquerda naquele país europeu, conhecido como Brigadas Vermelhas, em um contexto de extrema repressão, controle e violência estatal. Naquele tempo, como para muitos outros, sair da Itália era a única forma de permanecer vivo.

Sua situação evidencia o caráter ideológico do Estado argentino sob o governo de Milei – em conluio com o Judiciário, que perpetra perseguições políticas através de medidas judiciais –, que, a pedido de Meloni, decidiu retirar o status de refugiado de Leo, uma figura legal concedida e respaldada por organismos nacionais e internacionais há décadas. A decisão ocorreu no mesmo dia em que seis militantes políticos opositores foram presos após uma ação simbólica em frente à casa de um deputado governista, e poucos dias após a mesma Corte Suprema confirmar a condenação considerada ilegítima da ex-presidenta Cristina Fernández de Kirchner, atualmente privada de liberdade, condenada a seis anos de prisão e impedida de ocupar cargos públicos.

Esse cenário também se insere em um contexto de reformas estatais inconstitucionais que atingem setores essenciais para a proteção de refugiados, como a CONARE. O governo ultradireitista alterou, por meio do decreto 819, a Lei 26.165 de proteção e reconhecimento ao refugiado — considerada modelo internacional. Com isso, determinou que deixará de conceder o status a pessoas estrangeiras que cometeram crimes graves, atos de terrorismo ou crimes internacionais, embora a medida não seja retroativa. Além disso, substituiu o INADI (órgão de combate à discriminação, também extinto) pelo Ministério da Segurança, e eliminou o Ministério do Interior, colocando a CONARE sob responsabilidade direta da Presidência da República, o que abre espaço para decisões arbitrárias.

Nesse contexto, o advogado Rodolfo Yanzón insistiu que Bertulazzi “ainda tem status de refugiado perante a ONU, já que há um processo em andamento na Justiça administrativa sobre o tema”. Por isso, Leo ainda não foi extraditado à Itália, segundo explicou.

Do que é acusado Leonardo Bertulazzi?

Leo foi acusado e condenado pelo sequestro de um empresário e por integrar uma organização considerada “terrorista”. Foi condenado à revelia na Itália com base em leis especiais duramente criticadas pelo Tribunal Europeu de Direitos Humanos. As únicas “provas” contra ele são as declarações de dois delatores com os quais ele sequer tem relação. Ele não é acusado de nenhum crime de sangue. Ainda assim, na Argentina, a ministra da Segurança, Patricia Bullrich, afirma sem provas que ele está envolvido na morte de Aldo Moro, primeiro-ministro italiano assassinado em 1978.

A Suprema Corte decidiu em tempo recorde pela extradição de Leonardo. Qual o significado jurídico dessa decisão?

É difícil tratar juridicamente uma decisão da Suprema Corte quando ela se limita a endossar um acordo entre dois governos autoritários. Digo isso porque os ministros da Corte não analisaram dois pontos cruciais: primeiro, que Bertulazzi é refugiado nos termos da Convenção da ONU; segundo, que os fatos já prescreveram, pois ocorreram há mais de 40 anos.

Mesmo ciente da proteção conferida pelo status de refugiado, a Corte limitou-se a afirmar que a extradição não se relaciona com o refúgio — ainda que tanto a Convenção quanto as leis argentinas estabeleçam claramente o princípio da não devolução, isto é, a proibição de enviar um refugiado a um país onde sua vida ou liberdade estejam em risco. No caso de Leo, trata-se da perseguição do Estado italiano a ex-militantes de esquerda e de uma legislação que, entre outras coisas, legitimou a tortura como método para obter “confissões”.

A mesma Corte que costuma levar anos para decidir questões importantes, resolveu o caso Bertulazzi em apenas dois dias — sem sequer revisar seus antecedentes. E fazem isso com a tranquilidade de quem se sabe impune e respaldado por setores poderosos. Como exemplo, a Ordem dos Advogados de Buenos Aires — entidade que representa interesses de grupos econômicos, grandes meios de comunicação e defensores de genocidas — divulgou recentemente um comunicado dizendo que qualquer mudança na composição da Corte seria um ataque à segurança jurídica. Dizem, na nossa cara, que estão muito satisfeitos com o que os três ministros da Corte estão fazendo — os mesmos que confirmaram a condenação da ex-presidenta Cristina em apenas 40 dias, sem sequer ler os argumentos da defesa.

Essa decisão afeta a proteção que Bertulazzi tem como refugiado, segundo a legislação argentina e internacional?

Com esse julgamento, a Suprema Corte argentina compromete seriamente a vigência da Convenção sobre Refugiados, pelo menos no âmbito nacional, contrariando uma tradição histórica de respeito aos refugiados. Mas isso está em sintonia com os ventos políticos que colocaram um ultradireitista como Javier Milei no poder — e com o que ocorre contra o povo palestino, pois estamos assistindo à eliminação de um povo inteiro sem que nada seja feito. Isso deixa marcas profundas na história dos povos. Não podemos esquecer que Milei é um dos poucos chefes de Estado que apoiam de forma acrítica os crimes cometidos por Benjamin Netanyahu. Mas seguimos na luta: a questão do refúgio de Leonardo Bertulazzi segue pendente, após a decisão arbitrária de Milei, em agosto de 2024, de anular seu status. O tema agora está nas mãos de juízes que ainda deverão decidir. Esperamos por ventos de mudança.

A Suprema Corte é conhecida por sua lentidão, mas acelerou decisões de grande repercussão política. Por que o caso de Leo foi incluído nessa lógica?

O caso de Leo entrou nessa lógica porque se alinha ao discurso da extrema direita do governo Milei, de Bullrich, Caputo, Sturzenegger e Macri. Eles atuam em total sintonia não apenas com Meloni, mas também com Netanyahu e Trump, entre outros — em nome do “combate ao terrorismo”, o mesmo argumento usado por ditaduras para perseguir opositores políticos. E infelizmente, o caso de Leo não é isolado.

Sabemos que Milei e Meloni (Argentina e Itália) lideram governos aliados. É possível fazer uma leitura geopolítica desse episódio?

Milei se satisfaz em receber prêmios de organizações que defendem ideias contrárias à democracia, aos direitos humanos e à igualdade. Ele se aproximou dos setores ultradireitistas europeus principalmente por meio de sua vice-presidente, com quem hoje não mantém mais relação. É preciso analisar com mais atenção os integrantes do seu governo — pessoas ligadas a fundos abutres, ao setor financeiro e aliadas dos grupos que atualmente governam Israel. E insisto na conexão com Israel e a causa palestina porque, na minha visão, caminhamos para esse cenário: um mundo onde povos inteiros podem ser considerados descartáveis — e, para isso, convenções como a dos refugiados são tratadas como obstáculos.

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