Um dossiê produzido pelo Projeto Brief e pelo Sleeping Giants expõe como as big techs, como são chamadas as grandes empresas de tecnologia, especialmente Meta e Google, se tornaram parte estrutural da expansão dos golpes digitais no Brasil. O documento conclui que a epidemia de fraudes não é resultado de falhas isoladas, mas de um modelo de negócios que prioriza a monetização de anúncios antes de qualquer mecanismo eficiente de prevenção. Entenda os detalhes na TVT News.
Segundo o relatório, golpes digitais hoje representam a maior ameaça patrimonial do país, superando furtos e roubos. Uma pesquisa Datafolha/FBSP indica que 33,4% da população adulta, o equivalente a 56 milhões de pessoas, foi vítima de algum golpe financeiro online no último ano, com perdas que passaram de R$ 111 bilhões.
Monetização primeiro, moderação depois
A investigação mostra que big techs possuem um padrão operacional que favorece a fraude. Anúncios ilegais entram no ar, circulam e geram receita, e só depois parte deles é removida. Documentos internos da Meta revelam que até 70% dos novos anunciantes promoviam golpes, produtos ilegais ou de baixa qualidade. Uma investigação da Reuters estima que a empresa faturou cerca de US$ 16 bilhões em 2024 com anúncios fraudulentos, aproximadamente 10% de toda sua receita anual.
A baixa fricção para a criação de contas e a tolerância à reincidência contribuem para essa dinâmica. Fraudadores recebem múltiplas advertências antes de serem banidos e rapidamente abrem novos perfis. Para os autores, os números de “anúncios removidos” divulgados pelas plataformas revelam a escala industrial do problema, e não sua contenção.
Crescimento explosivo de crimes digitais
O dossiê aponta ainda que o crime organizado migrou de forma acelerada para o ambiente digital, onde há mais lucro e menos risco. Em São Paulo, os crimes eletrônicos cresceram 661% entre 2019 e 2022; os estelionatos digitais, 1.162%. O número de golpes registrados saltou de 377 casos em janeiro de 2019 para 11.311 em dezembro de 2022.
Facções como PCC e Comando Vermelho já tratam golpes online como atividade empresarial: operações conjuntas movimentaram ao menos R$ 6 bilhões em um único ano. A combinação de ferramentas de segmentação, pagamento integrado e baixa fiscalização das big techs criou, segundo o dossiê, a “infraestrutura perfeita” para o crime em larga escala.
Vulneráveis no alvo
A investigação mostra que os golpes exploram especialmente populações de baixa renda e em vulnerabilidade social. Entre 16 mil anúncios sobre “empréstimo” catalogados no ambiente da Meta, 52% apresentavam indícios de fraude.
A apropriação de símbolos oficiais também se tornou prática comum. Um estudo do NetLab/UFRJ encontrou 1.770 anúncios fraudulentos que utilizavam logotipos do governo federal, bandeira nacional ou imagens manipuladas de autoridades para aplicar golpes de PIX, INSS e benefícios sociais. Durante as enchentes no Rio Grande do Sul, anúncios patrocinados pediam doações falsas usando imagens de resgate e mensagens de apelo humanitário.
Inteligência Artificial impulsiona fraude
O avanço da inteligência artificial tornou as fraudes ainda mais sofisticadas. Deepfakes e clonagem de voz ampliaram a convincência dos golpes. A imagem do médico Drauzio Varella, manipulada por IA, foi usada para vender produtos falsos. O NetLab da UFRJ mapeou 3.710 anúncios fraudulentos com o nome do médico apenas na Meta, entre julho e dezembro de 2024.
O próprio Conselho de Supervisão da Meta reconheceu, em decisão de 2025, que a empresa não está fazendo o suficiente para combater esse tipo de fraude.
Corrida por uma regulação eficaz
Diante da ineficácia da autorregulação, o relatório aponta que o Brasil precisa de uma legislação robusta. O Digital Services Act da União Europeia é citado como referência, com mecanismos de verificação prévia e multas de até 6% do faturamento global de plataformas que não atuarem preventivamente contra golpes.
No Brasil, a decisão do STF de 26 de junho de 2025, que considerou parcialmente inconstitucional o Artigo 19 do Marco Civil, abriu caminho para responsabilização civil das plataformas que não removam conteúdos manifestamente ilícitos, incluindo anúncios pagos. O dossiê ressalta, porém, que a decisão precisa ser acompanhada de regulamentação legislativa que imponha deveres claros de diligência, transparência e mecanismos eficazes contra a reincidência de contas fraudulentas.
Os autores afirmam que, sem regras claras e sanções proporcionais, as big techs continuarão operando como “rodovias pedagiadas” para o crime: lucram bilhões com o fluxo, mas não filtram quem entra, deixando que o prejuízo recaia sobre as vítimas.
