Você conhece o Candomblé Banto? No mês da consciência negra, a fundadora do coletivo Samba Quilombola, jornalista e professora de capoeira Lyllian Bragança, explica neste artigo, exclusivo para a TVT News, como é a cosmovisão do candomblé do povo Banto, um dos primeiros povos escravizados a chegar ao Brasil.
A cosmovisão do Candomblé Banto: conscientização através da cultura afro e indígena
Falar de candomblé é permear nossas mentes ao que chamamos de sincretismo, que nos atravessa no processo de escravização, e no entanto é importante refazer os passos e remontar o quebra-cabeça criado para que nosso culto, transmitido através da oralidade, seja hoje uma forma de luta contra os preconceitos e apagamentos sistêmicos impostos aos povos na diáspora e aos verdadeiros donos dessa terra, os indígenas.
O Candomblé da Nação de Angola foi trazido pelo povo Banto, um dos primeiros povos escravizados a chegar ao Brasil por volta do século XVI e que aqui tiveram que adaptar as formas de cultuar a ancestralidade observando os povos originários, que tratavam de manifestar em comunhão com suas comunidades através dos pajés e majés.
Assim, nasce o culto ao Caboclo no Candomblé de Angola, que evidencia a absorção dos sistemas de crenças dando abertura para o que a seguir seria o sincretismo. Em respeito aos povos que aqui já estavam, e como forma de adaptar-se com as influências energéticas dessa terra, da manutenção e sobrevivência das culturas é que se deu a união dos indígenas e dos povos escravizados.
Muitos estudos dão conta que a Umbanda tem grande contribuição, o que é inegável. No entanto, é preciso observar a própria contextualização para catalogar as encruzilhadas que nos trouxeram na formulação da Umbanda e a colaboração do candomblé de Angola, tão apagado ao longo de séculos e que sem ele não haveria a concepção da Umbanda no Brasil.
Segundo o livro O candomblé bem explicado, de 2019, de forma condensada eles explicam que os povos originários se identificaram com aqueles que vieram para ser explorados pelo colonizador, o povo preto e, contudo, como muitos já haviam tido contato com a igreja católica adaptaram forma de cultuar absorvendo conteúdos do catolicismo.
Estado Laico e o terrorismo religioso
O termo terrorismo religioso tem sido utilizado por muitos sacerdotes e, embora para alguns pareça exagerado demonstra exatamente o que tem acontecido nas inúmeras casas de candomblé no território nacional. De norte a sul do país as casas de axé têm sido ameaçadas por vários motivos, um deles parte de locatários evangélicos que não aceitam alugar suas casas para entidades religiosas de matriz africana.
É sempre importante ouvir o que falam nossos Tatas. No Candomblé Banto, a palavra “Tata” significa “pai” e é usada para designar cargos e sacerdotes.
Para Tata Lobomim, que mudou recentemente sua casa de axé para outro local: a prioridade é perguntar se os proprietários da casa são evangélicos, pois eles nunca nos aceitam. Ao revelar isso, fica evidente o quanto estamos permeados pelo preconceito que coloca esses grupos em desvantagem.
Vale lembrar que somente no Rio de Janeiro, em 2019, foram mais de 200 casos de intolerância religiosa, segundo a Agência Brasil. Notadamente o crescimento da extrema-direita no país têm intensificado os confrontos que geram ameaças, depredação, retaliação e expulsão das comunidades.
Mesmo com o artigo 5º da Constituição Federal que assegura a liberdade de consciência e de crença, garantindo o livre exercício dos cultos religiosos, o processo de demonização que foi forjado pela igreja católica e, em seguida, pelas igrejas neopentecostais fundamentalistas, ainda é hoje o que mais atrapalha a continuidade e uma harmonia entre os dogmas religiosos.
Notório saber, da Gomeia
Essas barreiras não impediram o crescimento exponencial dos Inzos (casas em Kibundo), e elas conseguiram se ajustar às adversidades impostas por políticas públicas de segregação. Isso se deu por conta de alguns nomes do candomblé, como Joãozinho da Gomeia, que construiu uma vida em torno do culto à ancestralidade.
Nascido em 1914 como João Alves Torres Filho, Joãozinho da Gomeia foi um Tata Nkisi (Pai de Santo). Para muitos, também, controverso. Fato é que foi iniciado no candomblé por conta de fortes dores de cabeça, sendo visitado pelo caboclo Pedra Preta ainda na infância.
Joãozinho da Gomeia teve adeptos da política ao seu lado, o que lhe proporcionou prestígio mesmo numa época de embates e constantes rupturas contra a democracia, tendo assim uma favorável ascendência, importante para todos os candomblés do país. Consultavam-se com ele nomes como: Getúlio Vargas e Juscelino Kubitschek, o que lhe rendeu força política, já que muitos terreiros foram invadidos e seguiram sendo invadidos por conta de suas costumeiras festas.
No entanto, mesmo com essa célebre visitação de políticos de relevância à época, nunca as casas de axé tiveram paz e puderam fazer valer aquilo de mais precioso para uma boa continuidade, cuidar da comunidade. Entendendo isso, o projeto de aniquilar essas práticas sempre esteve na espinha dorsal do Brasil, sobretudo a partir de uma elite eurocêntrica que não aceita a narrativa negra.
Muitas casas de santo, ao longo dos anos, foram sendo escanteadas e tiveram que buscar espaços em locais mais afastados dos centros e dos guetos onde nasceram. E com isso deram abertura para que as igrejas pudessem adentrar essas localidades e assim construir um projeto de poder que visa a política institucional.
É o que vemos hoje no Congresso Nacional, uma bancada evangélica. No entanto, ainda temos casas (Inzos) que entendem a necessidade de estar nas comunidades, é o caso do Ninzo Nguzu Mazá Nkisse Dandalunda au Gongobila, que para o Tata Danborocy, é preciso resistir onde fixamos morada, estar na periferia, é onde mais precisam que esteja uma casa de candomblé.
Demarcação já
A inconstitucionalidade no processo de demarcação de terras indígenas, PL 2093/23 aprovado no Senado, demonstra a necessidade de estarmos alinhados e entendermos os movimentos arquitetados pela classe dominante no território nacional e que engloba não só a população dos povos originários, mas também todas as minorias.
Esse projeto visa a demarcação de terras indígenas ocupadas de forma permanente na data da promulgação da Constituição Federal, em 5 de outubro de 1988. O que remonta um projeto colonizador em curso no país desde 1500 e que quer apagar a população desta terra, retirando direitos e aniquilando comunidades que se tornaram essenciais para o entendimento cultural brasileiro.
Na verdade, é preciso reverenciar e aprender como essas matrizes tão importantes que realinham o cuidado com o outro e aplicar isso de forma contundente na crise climática, tema central nas últimas semanas no Brasil. Tema pouco debatido com quem realmente entende do cuidado com a natureza, já que para esses povos o que tiramos da terra devolvemos para ela, para além, fazemos parte da terra.
Portanto, a cosmovisão indígena e afro-diaspórica remonta o papel central da comunidade, do cuidado com as crianças (o futuro) e que reverencia os mais velhos (o passado). Assim, essas culturas conseguiram viver por séculos sem ser destruídas e seguiram unidas para tornar essas terras mais viáveis para as gerações vindouras.