Aos 40 anos de morte de Cora Coralina, a TVT News explica a história de vida da poeta que nasceu ainda no Império e viu a posse de José Sarney que simbolizou a redemocratização após a ditadura militar de 1964 a 1985. Aqui também se encontram três poemas escritos pela goiana e informações sobre o Museu Cora Coralina, localizado na cidade de Goiás.
Um dos poucos símbolos da cultura goiana exportado para todo o país e para o mundo, a poeta Cora Coralina, nasceu e viveu grande parte da vida no coração do país, escreveu sobre o ruralismo, sobre a vida, sobre ser mulher, sobre o trabalho, sobre o simples e o complexo, em uma grande autobiografia em forma de poesia.
Quem foi Cora Coralina?

A querida Anna Lins dos Guimarães Peixoto Bretas, que mais tarde se torna Cora Coralina, nasceu nos últimos três meses do Império brasileiro, no dia 20 de agosto de 1889. E morreu, aos 95 anos, em 10 de abril de 1985 — nesta quinta-feira (10) completa 40 anos de sua morte.
Ela era filha de Francisco de Paula Lins dos Guimarães Peixoto, desembargador nomeado por D. Pedro II, e de dona Jacyntha Luiza do Couto Brandão. Ou seja, sua família teve contato direto com as políticas imperialistas.
Anna viveu grandes momentos de transições políticas e sociais no Brasil. Na infância, Cora Coralina viu a escravidão desaparecer lentamente, a escravatura foi abolida oficialmente um ano antes de seu nascimento, mas os impactos não foram imediatos e até hoje a sociedade lida com os resquícios dos mais de 300 anos de escravidão.
Viu, ainda que não se lembre por ser recém nascida, o regime imperial cair e a República surgir.
Ela nasceu na cidade de Goiás, na época capital do estado e hoje conhecida como Goiás Velho. O local foi um centro de efervescência cultural e econômico da região, devido ao garimpo de ouro durante o período imperial. Ainda sim, o município é pequeno, ruas estreitas feitas de pedras, calmaria no ar e vendas de doces. Em pesquisa mais recente do IBGE, Goiás Velho tem apenas 22 mil habitantes.
Goiás, minha cidade…
Eu sou aquela amorosa
de tuas ruas estreitas,
curtas,
indecisas,
entrando,
saindo
uma das outras.
Eu sou aquela menina feia da ponte da Lapa.
Eu sou Aninha.
– Cora Coralina em Minha Cidade
Ela começou os estudos na escola Mestre Silvina, a professora também havia sido docente da mãe de Cora Coralina. Mas por ser mulher precisou abandonar a formação na terceira série do primário. Na época, a família também tinha se mudado para uma fazenda mais afastada.
O problema foi contornado pela mãe, dona Jacyntha, que era uma mulher muito culta, escrevia e falava outras línguas, entre elas o francês. A mãe fez com que Anna estudasse em casa e, assim, criou carinho pela literatura.
A amiga pessoal da poeta e diretora do Museu Cora Coralina, Marlene Vellasco, conta que depois da morte do pai, a situação financeira da família ficou difícil, mas a literatura resistiu, “ela esperava na porteira da fazenda os livros do Gabinete Literário que chegavam em carro de boi, Cora Coralina foi uma leitora voraz e aprendeu a escrever pela literatura”.
Em 1899, aos 14 anos começou a escrever os primeiros textos que seriam publicados mais tarde em jornais da cidade de Goiânia — inaugurada em 1933 e que se tornou capital em 1942.
No início da juventude da vida adulta, Cora vai para São Paulo com o advogado Cantídio Tolentino de Figueiredo Bretas, com quem viveu por 24 anos até a morte dele. Com Cantídio, Cora teve seis filhos: Paraguassu Amaryllis, Enéias, Cantídio, Jacyntha, Ísis e Vicência. Enéias e Ísis falecem antes dos seis meses de vida.

Ficou no estado de São Paulo por 45 anos, retornando para Goiás em 1956. Primeiro, passou anos em Jabuticabal criando os seus filhos. Em 1924, ela se mudou para a capital paulista. Na primeira semana na terra da garoa, Cora Coralina teve que ficar presa em um hotel em frente à Estação da Luz.
Na respectiva data, a cidade estava em um cenário de guerra civil pela Revolta Paulista, que fez parte do movimento tenentista. A Primeira Guerra Mundial já tinha começado e terminado. A Semana de Arte Moderna também havia acontecido e Cora Coralina não havia sido convidada, ela já tinha alguns textos publicados em periódicos, mas nenhum livro.
Nesse período em que morou na capital paulista, a casa de Cora ficava na mesma rua do escritor Monteiro Lobato — fortemente criticado atualmente pelos teor racista das obras. Na época, irreverente, os filhos de Cora e de Monteiro se tornaram amigos.
“Ela sempre viveu nesse mundo intelectual, participou de encontro de escritores, criou o jornal A Rosa em 1907 com amigos, ela foi muito além do seu tempo. Ela foi uma mulher que que rompeu todas as barreiras”, afirmou Vellasco.
Depois, Cora Coralina viu o filho Cantídio participar da revolução constitucionalista em 1932, liderada por Getúlio Vargas. A própria poeta se alistou como enfermeira e costureira de uniformes.
Três anos depois, o marido Cantídio Tolentino de Figueiredo Bretas faleceu. Para sobreviver, ela passou a vender livros pela Editora José Olympio e foi colaboradora do jornal O Estado de S. Paulo. Com o tempo, retornou para o interior do estado paulista, em Penápolis produziu e vendeu linguiça caseira e banha de porco.
A diretora do museu resume Cora Coralina como trabalhadora, sempre esteve ativa produzindo poemas, cuidando da família e vendendo o que fosse necessário para ter renda. Um dos produtos que também lhe deu fama foi os doces cristalizados, passas, glaçados.
Uma das especialidades era o alfenim feito de açúcar, água e limão ou vinagre, que é modelado em formas de animais, flores, pessoas e outros objetos.
Nessa fase, Cora completa 50 anos. A marca da idade lhe resultou vários momentos de transformação em que mais tarde descreveu como “a perda do medo”. Ela então decidiu atender pelo pseudônimo e abandonar o nome de batismo.
Em 1956, Cora Coralina, aos 67 anos, retorna sozinha para a cidade de Goiás, onde viveu os doces que se tornaram típicos da região.
Eu sou aquela mulher
que ficou velha,
esquecida,
nos teus larguinhos e nos teus becos tristes,
contando estórias,
fazendo adivinhação.
Cantando teu passado.
Cantando teu futuro.– Cora Coralina em Minha Cidade

Quase uma década depois de retornar para a terra natal, aos 75 anos da poeta, o primeiro livro foi publicado oficialmente: Poemas dos Becos de Goiás e estórias mais, pela Editora José Olympio, a mesma que Cora vendeu livros após a morte do marido. A publicação aconteceu no primeiro ano da ditadura militar. A obra completa 60 anos de circulação em 2025.
Em vida lançou mais dois livros: Meu Livro de Cordel (1976) e Vintém de Cobre – Meias Confissões de Aninha (1983).

A fama absoluta pelo país aconteceu após o escritor Carlos Drummond de Andrade ler os textos da goiana, se impressionar e enviar uma carta endereçada para o estado de Goiás. Na época, Drummond de Andrade não sabia o endereço de Cora.
Conhecida em todo o estado, a carta chegou na Universidade Federal de Goiás (UFG) que fez com que chegasse em Cora. A poeta goiana respondeu e eles viraram amigos de cartas, mesmo sem se conhecerem.
Carlos Drummond de Andrade considerou Cora Coralina a pessoa mais importante do estado: “Cora Coralina, para mim a pessoa mais importante de Goiás. Mais do que o governador, as excelências parlamentares, os homens ricos e influentes do Estado”.
A mídia nacional descobriu a existência da poeta a partir dessas cartas e as falas de Drummond de Andrade. Jornalistas procuraram a cidade de Goiás no mapa, visitaram o casarão no Rio Vermelho e conheceram a doceira Cora Coralina.
Cora Coralina morreu em 10 de abril de 1985 em decorrência a uma pneumonia. Aos 95 anos de idade, ela já tinha assistido o golpe da ditadura militar acontecer, viu o regime cair e a redemocratização ocorrer com a posse de José Sarney.
Conheça a obra da goiana
Se você leu até aqui já entendeu que Cora Coralina viveu uma vida e tanto. Célebres momentos da história brasileira tangenciaram a vida da própria autora. Mas o elemento que mais respingou foi a simplicidade da vida no interior.
Os poemas, num geral, formam uma autobiografia riquíssima. O primeiro livro se chama Poemas dos Becos de Goiás porque foram os becos que a própria Cora percorreu. Caminhos percorridos pelos escravocratas, pelos escravizados, pelos representantes do império, pelos representantes da república, pelos goianos trabalhadores simples e pelos fazendeiros, pelas crianças, pelos jovens, pelos sonhadores, pelas mulheres, por todos durante uma história de 95 anos.
A TVT News separou alguns poemas para você conhecer a goiana:
Minha Cidade
Goiás, minha cidade…
Eu sou aquela amorosa
de tuas ruas estreitas,
curtas,
indecisas,
entrando,
saindo
uma das outras.Eu sou aquela menina feia da ponte da Lapa.
Eu sou Aninha.Eu sou aquela mulher
que ficou velha,
esquecida,
nos teus larguinhos e nos teus becos tristes,
contando estórias,
fazendo adivinhação.Cantando teu passado.
Cantando teu futuro.
Eu vivo nas tuas igrejas
e sobrados
e telhados
e paredes.
Eu sou aquele teu velho muro
verde de avencas
(…)Eu sou estas casas
encostadas
cochichando umas com as outras.
(…)Eu sou o caule
dessas trepadeiras sem classe,
nascidas na frincha das pedras:
Bravias.
(…)Eu sou a dureza desses morros,
revestidos,
enflorados,
lascados a machado,
lanhados, lacerados.
Queimados pelo fogo.
(…)Minha vida,
meus sentidos,
minha estética,
todas as vibrações
de minha sensibilidade de mulher,
têm, aqui, suas raízes.Eu sou a menina feia
da ponte da Lapa.
Eu sou Aninha.

Meu Epitáfio
Morta… serei árvore,
serei tronco, serei fronde
e minhas raízes
enlaçadas às pedras de meu berço
são as cordas que brotam de uma lira.Enfeitei de folhas verdes
a pedra de meu túmulo
num simbolismo
de vida vegetal.Não morre aquele
que deixou na terra
a melodia de seu cântico
na música de seus versos.
Todas as Vidas
Vive dentro de mim
uma cabocla velha
de mau-olhado,
acocorada ao pé
do borralho,
olhando para o fogo.
Benze quebranto.
Bota feitiço…
Ogum. Orixá.
Macumba, terreiro.
Ogã, pai-de-santo…Vive dentro de mim
a lavadeira
do Rio Vermelho.
Seu cheiro gostoso
d’água e sabão.
Rodilha de pano.
Trouxa de roupa,
pedra de anil.
Sua coroa verde
de São-caetano.Vive dentro de mim
a mulher cozinheira.
Pimenta e cebola.
Quitute bem feito.
Panela de barro.
Taipa de lenha.
Cozinha antiga
toda pretinha.
Bem cacheada de picumã.
Pedra pontuda.
Cumbuco de coco.
Pisando alho-sal.Vive dentro de mim
a mulher do povo.
Bem proletária.
Bem linguaruda,
desabusada,
sem preconceitos,
de casca-grossa,
de chinelinha,
e filharada.Vive dentro de mim
a mulher roceira.
-Enxerto de terra,
Trabalhadeira.
Madrugadeira.
Analfabeta.
De pé no chão.
Bem parideira.
Bem criadeira.
Seus doze filhos,
Seus vinte netos.Vive dentro de mim
a mulher da vida.
Minha irmãzinha…
tão desprezada,
tão murmurada…
Fingindo ser alegre
seu triste fado.Todas as vidas
dentro de mim:
Na minha vida –
a vida mera
das obscuras!
O museu Cora Coralina
Inaugurado em 1989, pela Fundação Cora Coralina, no centenário do nascimento da poetisa, o museu fica na casa em que a poeta viveu na cidade de Goiás, às margens do rio Vermelho.
O local foi passado entre as gerações da família e é casarão construído no século 18, tendo sido uma das primeiras edificações da antiga Vila Boa (Goiás). No local também viveu o Capitão-Mor da Coroa Portuguesa.
Para acessar o museu de Cora Coralina é necessário contribuir com um valor de R$15. A instituição não tem fins lucrativos e todo dinheiro arrecadado é direcionado para a manutenção e melhoria do acervo.
Ele fica aberto de terça a sábado das 9h às 16h40 e aos domingos e feriados das 9h às 13h.
Segundo a diretora do museu, Vellasco, os principais visitantes do museu são os estudantes das escolas goianas que estudam a história e a cultura do estado. Sem eles, a renda do museu estaria ameaçada.
A diretora também adiantou para a TVT News que o casarão passará por uma série de reformas de modernização visando aumentar a acessibilidade do acervo e revitalizar o jardim em que a poeta descansava. O dinheiro é oriundo de editais públicos.
Serviço:
Museu Cora Coralina
Local: R. Dom Cândido, 20 – Centro, Goiás – GO
Funcionamento: terça a sábado das 9h às 16h40 e aos domingos e feriados das 9h às 13h
Ingressos: R$ 15,00
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