Questionado no Instagram se a relação amorosa com a noiva seria a mesma caso ela fosse uma CEO, Tallis Gomes, empresário fundador da G4 Educação, respondeu: “Deus me livre de mulher CEO”. A declaração repercutiu nas demais redes sociais sendo considerada machista e antiquada para 2024. Natural de Minas Gerais, Tallis é reconhecido por ter sido eleito para a lista da Forbes 30 Under 30 e considerado pelo MIT como um dos jovens mais inovadores do Brasil.
O post segue com declarações que invalidam a feminilidade caso a mulher trabalhe como CEO. “Essa mulher vai passar por um processo de masculinização que invariavelmente vai colocar meu lar em quarto plano, eu em terceiro plano e meu filhos em segundo”. A afirmação segue: “Na média, esse não é o melhor uso da energia feminina. A mulher tem o monopólio do poder de construir um lar e ser base de uma família. O mundo começou a desabar exatamente quando o movimento feminista começou a obrigar a mulher a fazer papel de homem”
Veja o post completo do empresário:
Contrapondo à fala machista de Gomes, a comunicadora Renata Freitas, diz ser necessário realizar mudanças nos quadros de lideranças das empresas, principalmente as de grande porte. A ideia dela é que as decisões sejam tomadas de modo mais inclusivo com a pluralidade do mundo. “Dessa forma, nos afastamos da monocultura discursiva de um único gênero, cor, raça e origem em direção a uma visão mais inclusiva e equilibrada. Sem equidade, a cultura dominante prevalece.”
Mulheres em cargos de liderança, além de pluralidade, podem trazer aumento nos lucros. Pesquisa feita pela consultoria McKinsey, analisou mais de 700 empresas de capital aberto em países latino-americanos. Entre 2014 a 2018, 64% das organizações que apresentaram mulheres na chefia aumentaram os ganhos em Ebitda — lucro conquistado antes da incidência de juros — em comparação com 43% que não possuíam mulheres na liderança.
- Vídeo: Marta Suplicy faça da importância de mulheres em cargos de poder
Como é o mercado de trabalho para as mulheres
Nesta quarta-feira (18), foi divulgado na Folha de S. Paulo um novo relatório do Ministério do Trabalho e Emprego e Ministério das Mulheres que mostra que as mulheres recebem, em média, 20,7% a menos do que os homens. O documento foi realizado a partir de dados de 2023 sobre 50.692 empresas com cem ou mais funcionários.
Nos cargos de chefia, como o criticado por Gomes, a diferença é ainda mais grave: chega a 27% para dirigentes e gerentes — um aumento de 1,8% em relação a 2022. Quando considerado o fator racial a diferença salarial é de 50,2% em comparação com os homens brancos no Brasil.
“Essa desigualdade é ainda mais evidente quando analisamos dados do IBGE que mostram que as mulheres negras elas recebem, em média, R$1800 enquanto o salário de homens brancos é de R$ 3.200”, expõe Luanny Faustino, sócia da Tree Diversidade e especialista em Diversidade, Equidade e Inclusão.
Para a especialista, é necessário que haja mudanças estruturais na sociedade brasileira a partir de medidas de médio e longo prazo, visto que o racismo é estrutural. “As mulheres negras estão na base da pirâmide socioeconômica, muitas vezes com trabalhos informais, por falta de oportunidade de estudos formais e de qualidade”, afirma Faustino.
O primeiro passo é o Estado estar atento a esses índices para implementar políticas públicas de garantia ao acesso à educação por parte das mulheres negras, principalmente na periferia, região em que concentra essa população. Para mudanças mais rápidas a sócia da Tree Diversidade entende que “as empresas precisam revisar as suas práticas de contratação, promoção e remuneração implementando políticas de equidade salarial e de transparência.”
Leia depoimentos que criticam a fala do fundador da G4 Educação
Ana Bavon, CEO da B4People, consultoria de inteligência em direitos humanos e estratégias de ESG:
“Declarações como a do “empreendedor” nos surpreendem pela falta de ética, porém, os dados nos mostram que o pensamento dele encontra eco no próprio ambiente de negócios. O Brasil tem apenas 17% de mulheres CEO segundo pesquisa recente do Instituto Ethos, quando falamos de mulheres negras esse número é ainda menor!
O assunto é compromisso ético com desenvolvimento sustentável! A ética é uma práxis, um valor inegociável que precisa fazer parte do conjunto de habilidades de qualquer liderança. E manifestar publicamente os valores que norteiam suas decisões é essencial.
E hoje, ser uma liderança significa estar alinhado com as expectativas do novo paradigma mercadológico, que associa a promoção dos Direitos Humanos — incluindo a dignidade das mulheres — à sustentabilidade corporativa e à competitividade.
Se você compõe um conselho de administração ou ocupa uma cadeira C-Level não compactue com esse tipo de mensagem, pois isso gera riscos reais à sua posição e reputação.
Se você flerta com esse tipo de conteúdo, você precisa urgentemente de uma conversa profunda consigo e com alguns pares que estão encabeçando o desenvolvimento social pela via corporativa.”
Letícia Rodrigues, especialista em ESG e Diversidade e Inclusão e sócia-fundadora da consultoria Tree Diversidade
“A primeira vez que eu li essa declaração eu sinceramente achei que era fake news, uma liderança falando isso? Depois me aprofundei e vi que era verdade. Eu fiquei ali com um sentimento misto, sabe por um lado eu fiquei sentindo desrespeito com mulheres e um desrespeito comigo, que sou uma liderança feminina a empresária que está à frente de um negócio que está crescendo. Acho que é um desrespeito também com as mulheres de forma geral, porque minimiza as escolhas. Lugar de mulher é onde ela quiser.
A forma como foi escrita, traz um desrespeito muito grande, minimiza as mulheres que querem que alcançaram esse espaço que estão ali e traz uma uma visão muito estereotipada de mulheres que são altas lideranças executivas.
O segundo ponto que me trouxe assim de sentimento é que como esse tipo de fala é um desserviço para a sociedade. Uma liderança, uma pessoa pública falar isso cai um pouco no ridículo. Porque mostra quanto essa pessoa tá desatualizada. As mulheres passam por centenas de problemas para alcançar o topo da cadeia: micro agressões de gênero durante toda a jornada profissional, assédio moral e sexual e desrespeito constante. E os homens deveriam fazer parte da luta pela equidade de gênero no mercado de trabalho.
Eu li essa notícia enquanto estava na conferência do Ethos 360, onde foi anunciado o perfil social de raça e gênero das 1.100 maiores empresas. O relatório mostra que 27,4% dos cargos executivos hoje são ocupados por mulheres. Isso é um número muito baixo. E essa fala de Tallis Gomes é um desserviço em um cenário como esse.”
Regina Calil, da Bravo: o mundo foi desenhado para homens e é preciso mudar
Regina Calil, vice-presidente da Bravo, comenta que a mulher, no mundo corporativo tem dose extra de dificuldade de se estabelecer como profissional. Mesmo assim, Regina sempre buscou novos desafios e aceitou o convite para liderar os caminhos de inovação e tecnologia na Bravo.
“Chegou a hora de mudar o olhar do mundo. É certo que a mulher ganhou um espaço na sociedade e ainda existe resistência para enxergar isso. Conquistamos espaços que só eram permitidas aos homens. Hoje podemos ver várias empresas em que a liderança feminina já é maior que a masculina, como a Bravo. Precisamos definitivamente olhar a fundo e iniciar uma mudança não só do reconhecimento do avanço da mulher como também mudar alguns padrões, de um mundo desenhado para os homens.”
Para a comunicadora Renata Freitas, sem representatividade não há mudança
“Sem representatividade não há mudança do status quo, ou seja, nada muda na cultura da marca, cultura empresarial, nada muda na lógica estrutural da cultura-sociedade-economia.
Capitalizar o discurso feminista através de narrativas de empoderamento que reforçam os mesmos padrões não gera transformação. Para que se tome decisões mais equânimes e inclusivas precisamos de representatividade e diversidade dentro dos círculos de decisão. Uma liderança diversa terá percepções e opiniões também diversas sobre qualquer que seja o objetivo ou desafio apresentado. Dessa forma, nos afastamos da monocultura discursiva de um único gênero, cor, raça e origem em direção a uma visão mais inclusiva e equilibrada.
Sem equidade, a cultura dominante prevalece. A mulher permanece como o outro, o estranho, o destoante, o dissidente.”
No LinkedIn, Rafaela Rezende, general manager da VTex no Brasil, contrapôs o empresário
“Estamos em 2024 e a tentativa de colocar nós mulheres em uma única caixa, continua. Estamos em 2024 e há quem acredite que a mulher deveria canalizar suas energias na família e no lar. Uma caixa. Uma das muitas caixas que podemos querer.”
Também no LinkedIn, Renata Vieira, diretora comercial e de marketing sênior da multinacional Reckitt, disse:
“A independência da mulher causa dor né? A perda do controle então, nem se fala. Essa declaração clama por urgência. Mulheres, juntas somos mais fortes, não vamos deixar a irritação nos dominar.”
Empresária CEO da JC Capital, Jennifer Chen afirma que trabalhar fora não atrapalhou o estabelecimento de boas relações com os filhos
“Como mulher, mãe de 3 filhos, esposa e CEO, posso afirmar com segurança que ser uma líder não me torna menos capaz de nutrir e manter relacionamentos saudáveis e equilibrados. Muito pelo contrário, a responsabilidade e a resiliência que desenvolvo como CEO são habilidades que também aplico no meu papel como mãe e esposa.
É desanimador ver que ainda existem preconceitos tão enraizados que perpetuam a ideia de que sucesso e liderança são incompatíveis com a feminilidade ou com a construção de uma vida pessoal plena. Quero ser um exemplo para minhas filhas, mostrando que é possível ser uma profissional de sucesso e, ao mesmo tempo, uma mãe e esposa presente”
Para primeira mulher CVO do mercado financeiro no Brasil, Karen Miura a melhor resposta é apoio mútuo
“A melhor resposta da sociedade em face de posturas descabidas de determinados empresários é apoiarmos, como consumidores, empresas com valores e propósitos dignos. Como é o caso da BRAVO, onde 70% da liderança, da qual faço parte, é feminina. Empresa de propósito que apoia uma relevante associação brasileira que visa aumentar a diversidade no c-Level chamada W-CFO, da qual também faço parte com muito orgulho.”
Reportagem de Emilly Gondim