O presidente da Argentina, Javier Milei, sofreu a maior derrota eleitoral desde que assumiu a Casa Rosada. Na província de Buenos Aires, que representa 40% do eleitorado argentino, Milei foi derrotado pelo peronismo, que o presidente argentino havia prometido enterrar. Com 99,98% das urnas apuradas, a oposição peronista ficou com 46,95% dos votos, enquanto o partido de Milei obteve 33,86%.
A reportagem da TVT News conversou com a jornalista internacional argentina, Carla Perelló, para entender o que significa a derrota de Milei e quais os motivos da crise do político argentino de extrema direita.
TVT News – O que significam os resultados das eleições em Buenos Aires
Carla Perelló – O território da província de Buenos Aires é considerado um termômetro das eleições nacionais de meio de mandato por ser a mais populosa do país (com quase 40% da população total) e uma das mais politicamente influentes. Nesse sentido, o resultado dessas eleições evidencia várias questões: em primeiro lugar, o grande descontentamento da população da província com as políticas do governo de Javier Milei.
Mas não só isso: também revela a eficácia da estratégia do governador, Axel Kicillof, que decidiu não realizar as eleições no mesmo dia das legislativas nacionais de outubro, para disputar, município por município, junto a lideranças locais — em sua maioria, figuras peronistas de longa trajetória.
Enquanto Milei buscava levar o debate ao nível nacional, Kicillof concentrou a disputa no plano local. Apesar de o governo ter perdido nas eleições, La Libertad Avanza conseguiu ampliar sua bancada de senadores e deputados no Congresso provincial e intensificar a polarização de uma sociedade que hoje debate entre dois projetos de país.

TVT News – O que levou a essa derrota de Milei?
Carla Perelló – Parece que são vários fatores. As políticas do governo do Milei estão concentradas no equilíbrio fiscal e a desregulamentação da economia, ou seja, na macroeconomia, sem dar atenção à microeconomia, que é o que impacta na vida das pessoas todos os dias.
Em 2023, metade da população no segundo turno votou nele acreditando que iria baixar a inflação, mas até agora os dados de pesquisas, como o Observatório de Tarifas e Subsídios do Instituto Interdisciplinar de Economia Política (IIEP) da Universidade de Buenos Aires (UBA-Conicet), mostram que, na Área Metropolitana de Buenos Aires (AMBA) – o que chamamos de “Conurbano bonaerense”, onde aconteceram as eleições neste domingo – os gastos com serviços públicos aumentaram quase sete vezes, o equivalente a 600% durante o governo do Milei, devido ao reajuste de tarifas e subsídios: 40% no último ano e 5,6 em relação ao mês anterior. Esse é apenas um exemplo de que os salários não são suficientes.
Além disso, nas últimas semanas, teve um grande impacto o caso de corrupção na Agência da Pessoa com Deficiência, que envolve a irmã do Presidente e secretária-geral da Presidência, Karina Milei, acusada de receber propinas de 3% sobre medicamentos destinados a pessoas com deficiência, cujas aposentadorias o governo cortou ou limitou.

O governo, que fez campanha contra a suposta corrupção do kirchnerismo, ficou sem respostas e sem capacidade de construir um discurso convincente para o eleitorado. Esse foi mais um escândalo de corrupção: no começo do ano, o presidente esteve envolvido numa fraude financeira após a promoção da criptomoeda Libra.
Fica evidente que, pelo menos, uma parte da sociedade argentina não concorda com violência do discurso e do acionar do governo que responde com ataques contra a população, repressão e restrições à liberdade de expressão.
Por fim, Milei reconheceu a derrota, disse que fará uma autocrítica, mas também afirmou que o rumo do governo não será modificado. Minha pergunta é: isso significa que ele ouviu as urnas ou representa a continuidade do projeto autoritário iniciado em dezembro de 2023?
TVT News – Pelas ruas da Argentina, o que mais impacta: os escândalos de corrupção, a crise econômica ou o comportamento de Milei?
Carla Perelló – Nas últimas semanas, um jingle ficou famoso nas ruas ao ritmo da popular música cubana Guantanamera, os argentinos cantam: “Alta coimera (propineira), Karina es alta coimera…Alta coimera, Karina es alta coimera”. Mas acredito que se trata de uma somatória de fatos de um desgoverno cujo único objetivo é a redução do Estado mediante o equilíbrio fiscal. Como é que consegue fazer isso? Com a retirada de direitos e o uso da violência estatal como primeira ferramenta diante dos protestos e insatisfações da sociedade.

TVT News – A conjuntura internacional teve algum reflexo ou as eleições são resultado de situações locais, como no Brasil são as eleições para prefeito?
Carla Perelló – Apesar de o governo Milei ter rompido com posicionamentos históricos da Argentina em termos de política externa e de ter decidido se alinhar aos Estados Unidos e a Israel, acredito que isso não foi o que impactou neste processo. situação econômica, as decisões em política económica para o sector produtivo do campo e os recentes casos de corrupção envolvendo a família presidencial provavelmente tiveram uma influência maior sobre os votos.
TVT News – Quais são as perspectivas dos peronistas para as próximas eleições?
Carla Perelló – Ontem, Kicillof advertiu que “o pior” que o principal espaço opositor pode fazer é “tomar esta vitória com soberba”, e eu concordo. Nas eleições do dia 26 de outubro serão eleitos 24 senadores/as e 127 deputados/as. Aqui, também teremos vários fatores que podem influir: o desenrolar dos casos de corrupção — que a administração Milei nega — e a nova boleta única de papel –que será implementada pela primeira vez, embora haja pouca a informação e capacitação por parte do governo sobre seu uso.

Foto: Andres Macera /Página 12/Argentina
Daqui para frente, será importante o posicionamento dos governadores o que influirá a campanha ao Senado. Ali está o maior desafio do peronismo que renovará 14 bancas de 72 no total. Na Câmara dos Deputados, a província de Buenos Aires também será chave, ao renovar 35 das 257 bancas nesse território. Por outro lado, o governo de Milei provavelmente conseguirá ampliar sua bancada no Senado -sobretudo depois de ter feito aliança com o partido PRO, do ex-presidente Mauricio Macri-, que atualmente conta com apenas 7 integrantes. O importante para a oposição é que Milei não obtenha poder suficiente no Congrsosso para continuar como contrapeso às políticas de desregulamentação.
Por fim, o rumo da economia será fundamental: hoje o risco-país alcançou 1100 pontos, e a cotação do dólar subiu até 5% em algumas instituições financeiras, superando os 1450 pesos. Esse dato é chave, porque a alta do dólar incide imediatamente na inflação.