Por Soraya Matos de Freitas
Haitianismo. Você já ouviu, leu ou viu essa palavra? Sabe o que ela significa? Tudo bem, vamos juntos entender um pouco como, em nossa história, essa palavra esteve presente em grande parte do século XIX e que, de certa forma, entre o dito e o não dito, esteve presente em nossa independência.
A palavra surgiu após os ecos da Revolução Haitiana pelo continente americano. O movimento aconteceu numa pequena e valorosa colônia francesa no mar caribenho, Saint Domingue. Se a Revolução burguesa, na França, em 1789, teve entre as ideias alguns dos conceitos filosóficos do Iluminismo como liberdade, igualdade e fraternidade, na Colônia caribenha, tais ideias foram colocados em xeque.
Os jacobinos negros, como ficaram conhecidos no livro de C. R. L James, foram além e questionaram para quem seriam a liberdade e a igualdade. Os revolucionários haitianos passaram a ação, pegaram em armas e lutaram pela libertação da escravidão e também pela igualdade entre Colônia e Metrópole. E quanto à fraternidade, bom, essa nem na França, nem no Haiti foram amplamente cultivadas, e é assunto para um outro momento. Vejamos, agora, porque esse movimento se tornou fonte desta palavra “haitianismo”, que carregava, em seu significado, o medo.
Trabalhadores, sim, trabalhadores escravizados foram os protagonistas desse movimento que culminou no fim da escravidão e logo depois na independência dos domínios coloniais franceses. Negros escravizados, ex-escravizados, mulatos escravizados ou não, e no começo da revolução, brancos pobres: essa foi a configuração da revolução. E, à frente, um general negro ex-escravozado: Toussaint Louverture.
Sob seu comando, Louverture levou os haitianos à vitória contra tropas francesas, espanholas e até mesmo inglesas. Pode imaginar isso? Lá, no longínquo final do século XVIII, começo do século XIX. Foi espantoso, assustador, revelador, ameaçador, algo que “precisava ser silenciado para não servir de exemplo para outras colônias”, para outros escravizados, para outros trabalhadores. E olha que ainda nem tínhamos a famosa frase de Karl Marx: “Trabalhadores do mundo, Uni-vos.” Sim, isso aconteceu muito antes de Marx.
Neste ponto, você já deve ter entendido o porquê do medo na raiz da palavra haitianismo. Por aqui, em terras que ainda eram portuguesas, os ecos dessa revolução foram sentidos, com muito medo. Afinal, a colônia portuguesa na América tinha uma população majoritariamente negra e indígena, e os trabalhadores eram, em sua maioria, escravizados.
O que a Revolução Haitiana influiu na Independência do Brasil?
Haitianismo foi o medo de que algo igual, ou minimamente parecido. acontecesse em outras colônias. A partir daquele movimento, os ingleses grandes comerciantes de escravos, passaram a defender o fim do tráfico negreiro. Os portugueses se viram pressionados a dar fim ao comércio de escravos. Talvez a melhor solução para os comerciantes negreiros para a América portuguesa, fosse à separação de Portugal. Nossa independência, diferente de outras na América foi liderada por um português que ao fim se tornou o Imperador. Ou seja, ficamos independentes da metrópole sendo governados pelo filho do Rei metropolitano, e garantindo assim o comércio de escravos por um bom tempo ainda. Aqui no Império do Brasil, o fim do tráfico de escravos só passaria a ser de fato ilegal em 1850.
Para além da independência, outra consequência desse haitianismo foi a repressão cada vez mais violenta sobre qualquer rebeldia ou revolta de escravizados. Assim foi com os Malês, na Bahia de 1835; Manoel Congo, no Rio de Janeiro em 1838 e Carrancas, em Minas Gerais em 1833, só para citar algumas.
Revolta dos Malês: a revolta de escravizados africanos ocorreu em Salvador, em 25 de janeiro de 1835. Foram cerca de 600 homens, a maioria, de negros muçulmanos, em especial da etnia nagô, de língua iorubá. A expressão “malê” vem de “imalê” que, em iorubá, significa muçulmano. Foto: Reprodução Senado Federal
O haitianismo, como nos ensinou o professor Marco Morel: “surgiu no Brasil com a crise da abdicação de D. Pedro I em 1831”. No entanto, podemos afirmar que o sentimento de medo que a Revolução haitiana causou, foi sendo construído ao longo dos anos que se seguiram a Revolução. Tal movimento deu origem ao primeiro país da América onde a escravidão foi abolida.
Em 1824, um Abade francês, Henri Grégorie, definiu assim aquele movimento: “Haiti é um farol elevado sobre as Antilhas, em direção ao qual os escravos e seus senhores, os oprimidos e opressores voltam seus olhares, aqueles suspirando, estes rugindo.” Silenciar o ocorrido na antiga colônia francesa foi o que as metrópoles e as elites coloniais fizeram. Obrigando ou impondo o desviar do olhar ao farol, da luz que poderia inspirar revoltas, revoluções e a justa luta por liberdade e igualdade.
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Sobre a autora
Soraya Matos de Freitas é professora de História do Ensino Médio nas escolas públicas da Secretaria de Estado da Educação do Rio de Janeiro