Entre os séculos 20 e 21, a forma que as mulheres negras foram representadas na arte brasileira mudou. Se no início elas eram retratadas sem destaque ou em uma condição subserviente, atualmente são representadas como protagonistas. Pensando sobre o lugar ocupado pelas figuras femininas não brancas na arte e impulsionada por debates organizados pelo grupo teatral Cia. do Despejo, a artista visual Carolina Gracindo decidiu fazer um mestrado com o objetivo de analisar trabalhos de arte dos séculos 20 e 21 que representam mulheres negras. A dissertação foi defendida no Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética e História da Arte da USP, sob orientação da professora Katia Canton.
Em 2019, o Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand (Masp) organizou a exposição Histórias das Mulheres: Artistas Antes de 1900. Ao visitar a exposição, Carolina se deparou com um questionamento: onde estão as mulheres negras?
A pesquisadora lembra que as mulheres negras não estavam representadas em primeiro plano na exposição. Um caso emblemático era o da pintura Cena de Mercado (1860), da artista Francisca Valadão. “É um quadro em que a temática principal são as frutas e legumes do mercado. As frutas e os legumes estão bem vistosos e lá atrás, no fundo, tem a representação de mulheres negras, comerciantes de turbantes. Então, existiam algumas pinceladas, algum vestígio e alguns detalhes, mas eles não eram a temática principal das representações. Não achei retratos que valorizassem essas mulheres como a gente via em outros retratos de mulheres brancas da época.”
Retratos do passado
Quando se pensa em retratos do final do século 19 e do começo do século 20, a maioria apresenta homens e mulheres brancas da classe burguesa. Carolina aponta a escassez de representações de mulheres negras durante esse período, enfatizando também que muitas obras aparecem sem autoria reconhecida. Segundo a pesquisadora, naquela época, o retrato era algo caro. Era preciso ter dinheiro para encomendar essas obras ou, no caso de autorretratos, obter uma formação artística para representar a si.
O apagamento não se limita à ausência de quadros que representam pessoas negras, estendendo-se para o campo material, já que “muitos trabalhos que foram feitos por artistas negros tinham outros destinos: eles eram apreendidos pela polícia, considerados manifestações criminosas. Muitas coisas se perderam, foram queimadas e censuradas”, diz Carolina.
Uma exceção a esse cenário é a pintura A Baiana, que exibe uma mulher negra com joias de herança africana e vestimenta nobre. Produzida no século 19 e de autoria desconhecida, Carolina afirma que a obra tem uma proposta provocadora. “(A mulher) está valorizada aos moldes europeus pelo uso de uma vestimenta nobre. Ao mesmo tempo, está usando joias crioulas, com símbolos e códigos que são de resistência”, diz a pesquisadora.
“Ele não parece ter sido feito de memória pelo contexto de produção daquele momento histórico, em que os retratos eram feitos a partir de modelos. Então, tudo nos indica que essa mulher existiu e se vestiu com aquela roupa e aquelas joias”, completa.
Representações racializadas de mulheres pretas
No início do século 20, as imagens traziam negras em condição subserviente, como em afazeres domésticos e trabalhos compulsórios. Carolina observa que, mesmo com a abolição, os ex-escravizados continuaram marginalizados. Então, os quadros deste período mostravam ilustrações de mulheres atreladas ao corpo escravizado.
Contudo, algumas obras fugiam dessa norma, como os retratos feitos pelo artista negro Benedito José Tobias na primeira metade do século 20. Em suas obras, o pintor apresenta as mulheres de forma digna. “Ele destaca as singularidades das mulheres em cada quadro. Tem coisas muito particulares nas obras com as quais eu me identifico e deve ter outras pessoas que se identificam também. Em um deles, há uma senhora em frente de folhas de bananeira e minha infância foi rodeada dessas folhas. Então, é uma representação que permite essa identificação afetiva, essa memória”, comenta Carolina.
A partir da década de 1980, os quadros feitos por pessoas não brancas ganharam mais espaço. “Tem uma variação maior na estética dos quadros representados, com um tom reivindicatório mais evidente”, aponta a pesquisadora.
Com o passar do tempo, a produção de obras que exaltam a figura negra aumentou. Em 2018, o Masp organizou a exposição Histórias Afro-Atlânticas, que expôs obras de arte sobre a diáspora africana nas Américas e os diálogos entre África, as Américas, Caribe e Europa. A exibição apresentou quadros feitos especialmente para compor a mostra, como é o caso do retrato Zeferina, de Dalton Paula. A pesquisadora defende essa ação, dizendo que “o retrato de Zeferina é um símbolo de resistência. Se ele não fosse encomendado, ele não existiria”.
Mãe Preta
Durante a pesquisa, Carolina encontrou vários quadros com o mesmo nome: Mãe Preta. Na época, ela estava trabalhando em uma peça chamada Ireti com a sua companhia de teatro. No espetáculo teatral, a protagonista também é uma mãe preta. O contato com essas figuras influenciou a artista a estudar essa representação mais a fundo, incluindo um estudo de caso sobre o tema em seu mestrado. Para isso, a pesquisadora selecionou cinco obras feitas no decorrer do século 20 e 21.
A expressão “mãe preta” tem origem no período da escravidão, com as amas de leite, que amamentavam os filhos das mulheres brancas, sem conseguir nutrir os seus próprios filhos. “Das cinco, três apresentam a amamentação. É uma ação simbólica muito forte. A mãe está amamentando uma criança branca e a gente percebe essa diferença étnica entre o bebê e a mãe. Isso, sem dúvidas, remete à questão das amas de leite, que seriam as babás atualmente, mostrando como esse sistema de servidão se atualizou no decorrer do tempo”, diz Carolina.
É isso que mostram as obras homônimas de Lucílio de Albuquerque, de 1912, e de Júlio Guerra, de 1955. Intituladas Mãe Preta, as duas apresentam mulheres amamentando. A primeira, uma tela com um tom melancólico, e a segunda, uma estátua em bronze, localizada no Largo do Paissandú, no Centro Histórico de São Paulo. Outra tela escolhida foi a Mãe Negra de Lasar Segall, de 1930, que também faz alusão às amas de leite.
A forma como a figura da mãe preta está representada não se restringe à amamentação. Entre as cinco obras analisadas no estudo de caso, destaca-se Mãe Preta ou a Fúria de Iansã, feita em 2014 por Sidney Amaral. Na tela, uma mulher aponta uma faca para um policial com o objetivo de proteger seu filho. Diferente das outras, essa mãe se encontra em um contexto de resistência ao enfrentar uma autoridade que ameaça sua existência.
Mais de 100 anos separam as histórias representadas pela pintura de Lucílio de Albuquerque e a de Sidney Amaral. A pesquisadora conta que a ideia era estabelecer um diálogo entre as obras a fim de entender quem são as mães pretas em cada período. Carolina também analisou a exposição Mãe Preta de 2018, resultado de uma colaboração entre as artistas Isabel Löfgren e Patrícia Gouvêa.
“A mãe preta da exposição já traz mais essa questão da pluralidade, das múltiplas mães pretas e isso foi um dos motivos de eu ter colocado na pesquisa. Nessa mostra, tem obras guiadas por essa temática muito diferentes entre si”, afirma.
*Por Jornal da USP