Golpe de 31 de março: 61 anos depois

O Brasil de março de 1964 revisto em perspectiva do Brasil de março de 2025
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Soldados reunidos em um pátio em Brasília esperando para patrulhar em frente ao Congresso Nacional. Foto : Arquivo Nacional/Fundo Correio da Manhã

Nos 61 anos do golpe de 31 de março, o historiador Demetrius Ricco Ávila traz olhar para aquele março de 64 a partir deste março de 2025, para provocar indagações, confrontar o senso comum e indicar leituras sobre a trama conspiratória. Veja mais conteúdos sobre ditadura militar na TVT News.

Idas e vindas: março na história brasileira, do golpe de 31 de março de 1964 à (re)afirmação da democracia 

Por Demetrius Ricco Ávila

Março na história brasileira

O mês de março de 2025, no Brasil, vem sendo assinalado por extraordinárias articulações entre efemérides – isto é, datas que demarcam acontecimentos importantes do passado – e eventos do presente, que o país acompanha atento, conquanto se mantenha significativamente dividido.

No decorrer deste mês de março, no último dia 15, celebramos os quarenta anos da redemocratização que se seguiu após um longo período de ditadura militar – em 15 de março de 1985, José Sarney, primeiro presidente civil eleito, ainda que de forma indireta, depois de uma sequência de cinco militares, é empossado presidente da República.

Concomitantemente a essa celebração, chegam-nos notícias diárias acerca do julgamento, pelo Supremo Tribunal Federal, da denúncia da Procuradoria Geral da República, tornando réus, até o momento, oito homens envolvidos nos atos golpistas de 08 de janeiro de 2023, dentre os quais, um ex-presidente abertamente defensor de modelos autoritários de governo. 

As instituições democráticas resistiram àqueles atos e, aparentemente, seus mentores intelectuais virão a ser punidos com as penas da lei. A Carta Magna de 1988, “Constituição Cidadã”, conforme alcunha a ela atribuída por Ulysses Guimarães, segue vigente (março também carrega uma efeméride ligada a constituições, mas à Constituição autoritária de D. Pedro I, a primeira de nossa história, outorgada a 25 de março de 1824), e as articulações entre passado e presente bem podem levar a pensar que estamos vivendo um ponto alto da história.

Oficiais militares réus por tentativa de golpe de Estado acaso sugeririam que começamos a realizar, com quarenta anos de atraso, uma “purga” que a Lei da Anistia, de 1979, ao se fazer “ampla, geral e irrestrita”, obstou? 

Ainda no escopo do corrente mês, na esteira do reconhecimento internacional demonstrado pela obtenção de uma inédita premiação no Oscar, no último dia 02, por Ainda Estou Aqui, filme brasileiro que aborda prisão, tortura, morte, ocultação de cadáver e, especialmente, o sofrimento inflingido por uma ditadura a uma família por ela devassada e mutilada, deve-se recordar outra efeméride, diametralmente oposta à do dia 15: o último dia de março, 31, é indelevelemente lembrado como o do golpe de 1964. 

Entrementes, antes que se passe a discorrer a respeito do golpe, fazem-se necessárias algumas palavras explicativas, concernentes ao próprio texto. A despeito de ser redigido com rigor, procurará este fugir ao academicismo e construir-se por meio de uma prosa ágil e acessível, com vistas a alargar seu alcance em termos de público leitor.

Por outro lado, de limites físicos relativamente exíguos, não pretende aprofundar discussões, nem se arroga capaz de oferecer explicações definitivas sobre o tema que se dispõe a tratar, quanto menos esgotá-lo.

Deseja, antes, provocar indagações capazes de confrontar o discurso do senso comum sobre o golpe de 31 de março de 1964 e da ditadura de mais de vinte anos por ele implantada. E, como consequência dessa confrontação, o texto objetiva inequivocamente despertar o interesse de quem venha a apreciá-lo para outras e mais abrangentes leituras relativas à história política do Brasil nas últimas seis ou sete décadas, em virtude do que, as linhas a seguir passam de pronto a exibir algumas sugestões.   

Relatos e historiografia do golpe de 31 de março

A cadeia dos acontecimentos que resultaram no golpe de 31 de março de 1964 é extensa e intrincada em muitos dos pontos que nela se enlaçam.

Praticamente desde a primeira hora de instauração do regime discricionário implantado pelo golpe, imprimiram-se milhares de páginas contendo relatos de pessoas que participaram dessa cadeia, mais ou menos de perto, em um ou mais de seus pontos.

Dentre esses relatos, muitos dos quais elaborados em terras estrangeiras pela imposição do exílio compulsório a seus enunciadores, podem ser citados, a título de exemplo:

  • o de Abelardo Jurema (Sexta-feira 13 – os últimos dias do governo João Goulart), ex-ministro da Justiça do governo João Goulart;
  • o de Paulo Schilling (Como se coloca a direita no poder, em dois volumes), economista iracundo, que fora assessor de Leonel Brizola no governo do Rio Grande do Sul, secretário-executivo da Frente de Mobilização Popular e diretor do jornal brizolista Panfleto;
  • o de Miguel Arraes (Brasil, o povo e o poder), governador de Pernambuco deposto pelo golpe; e muitíssimos mais. 

Para além desses relatos, no mais das vezes carregados de uma densidade existencial, a boa historiografia brasileira produziu e segue produzindo obras de relevo para a elucidação, seja das razões, seja do modus operandi dos que derrubaram um governo constitucionalmente estabelecido e desencadearam uma repressão que se estenderia por mais de dois decênios.

Também a título de exemplo, nessa direção, recorde-se um livro de Luiz Alberto Moniz Bandeira chamado O Governo João Goulart e as lutas sociais no Brasil, um dos trabalhos pioneiros no que tange à historiografia do golpe, uma vez que veio à luz no final da década de 1970, época em que a ditadura dava sinais de arrefecimento. 

Trama conspiratória do golpe militar

Tanto nos relatos vívidos de lideranças sociais e políticas e de participantes diretos do governo deposto, quanto nos trabalhos historiográficos de que se possa lançar mão, salta aos olhos o fato de que o golpe de 31 de março de 1964 é filho da conspiração; de uma trama de conspirações, melhor dito, que envolveu:

  • elementos endógenos – latifundiários, industriais, imprensa e jornalistas de grande expressão, setores conservadores da Igreja, falsos institutos de pesquisa e fomento à democracia (como IPES e IBAD), parlamentares, governadores e outros elementos da classe política, partidos, militares…
  • e exógenos, sobremaneira, o governo dos Estados Unidos da América, cuja ingerência sobre a política brasileira, coroada pelo golpe de 1964, está competentemente descrita e documentada em O dia que durou 21 anos (Brasil, 2012), dirigido por Camilo Galli Tavares. 

A trama conspiratória, espargida em bombardeios midiáticos diários, capturou a consciência da classe média, temerosa da “ameaça comunista” que supostamente vinha rondando o Brasil, temor acirrado pelo sucesso da Revolução Cubana desde 1959.

Parte dessa classe média vai às ruas marchar, “em família”, “com Deus e pela liberdade”, para se contrapor ao Comício da Central do Brasil, de 13 de março de 1964, no qual João Goulart subira o tom na pugna por suas Reformas de Base.

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Mulheres marcham com uma faixa com os dizeres “O Brasil não será uma nova Cuba” durante a Marcha da Família com Deus pela Liberdade, entre 19 de março e 8 de junho de 1964. Foto : Wikimedia Commons

Note-se que, naquele contexto de Guerra Fria, e em conta de idiossincrasias da sociedade brasileira – que por certo perduram, anacronicamente, nos dias de hoje -, a alusão a reformas era prontamente entendida como demonstração de alinhamento com Moscou. Meras reformas, propostas dentro da ordem constitucional, em que pese o tom mais elevado de Goulart no Comício. 

O programa das Reformas de Base, portanto, nem de longe, significava revolução. João Goulart era gaúcho e herdeiro político de Getúlio Vargas, que, por sua vez, era produto do meio castilhista e borgista do Rio Grande do Sul dos tempos da República Velha. Júlio de Castilhos, que seria sucedido e teria sua política continuada por Borges de Medeiros no governo do Estado natal de Vargas, fora o materializador, em termos políticos e institucionais, nas plagas sul-rio-grandenses, do positivismo do pensador francês Auguste Comte (1798-1857), doutrina francamente reformista e avessa à ideia de revolução. O trabalhismo brasileiro, ao menos no que toca a Getúlio Vargas e João Goulart, praticamente em nada se assemelhava ao comunismo. 

Não obstante, a principal dentre as Reformas de Base propostas por Goulart era a reforma agrária, defrontando-se, pois, com a solidez multissecular da instituição do latifúndio. Estando também acuados pelas Ligas Camponesas lideradas por Francisco Julião a partir de Pernambuco, e rancorosos de Leonel Brizola, que (mais radicalizado que João Goulart e seu grupo, de modo a cindir o PTB em tendências díspares), tendo governado o Rio Grande do Sul, fizera desapropriações de terras improdutivas ou de propriedade contestável e auxiliara trabalhadores rurais na criação de assentamentos, os grandes terratenentes do país unem-se à trama de conspirações, tomando parte na desestabilização do governo e na derrubada do presidente da República. 

Em todo caso, a evocação da questão agrária e do golpismo do setor primário contempla não mais do que um pedaço da cadeia de acontecimentos suprarreferida. Há outros, demasiados, pontos a elucidar, personagens a conhecer e ações e omissões a desvelar. No âmbito dessas elucidações e desvelos, seguramente se encontra a atuação do setor secundário.

Decorrido pouco tempo do golpe de 1964, o economista teuto-estadunidense André Gunder Frank, que vivera no Brasil e fora, junto com Vânia Bambirra e Theotônio dos Santos, um dos criadores da Teoria (Marxista) da Dependência, chamava a atenção para a participação ativa e decisiva da FIESP no golpe de 1964 (nesse sentido, ver o livro Gunder Frank – o enguiço das ciências sociais, de Gilberto Felisberto Vasconcellos).

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Tanques militares no Centro do Rio de Janeiro após o golpe militar. Foto : Arquivo Nacional/Fundo Correio da Manhã

Confirmada tantos anos depois por depoimentos à Comissão Nacional da Verdade (instituída em 2012), tal participação foi a pá de cal despejada sobre a ilusão de uma parcela da intelectualidade brasileira de esquerda, vinculada ao Instituto Superior de Estudos Brasileiros (mais conhecido como ISEB e extinto três dias após o golpe), que acreditava na existência de uma “burguesia nacional” interessada em se fazer vanguarda revolucionária, unida circunstancialmente às classes subalternas na luta contra o jugo do capital estrangeiro e as garras do imperialismo.

O pequeno livro cujo título tem a forma da pergunta Quem é o povo no Brasil?, de autoria do militar e historiador marxista Nelson Werneck Sodré, e parte integrante da coleção Cadernos do Povo Brasileiro, editada pelo ISEB por volta de 1962, traz a expressão mais acabada dessa ilusão.

Demasiados pontos, personagens, ações e omissões que excedem os limites e possibilidades desse texto. Uma imperiosa seletividade impõe, dessa feita, um avanço no tempo para memorar que, em 31 de março de 1964, o general Olímpio Mourão Filho, o “Vaca Fardada”, segundo cognome a ele conferido por si mesmo, para estupefação do marechal Humberto Castelo Branco, desloca-se de Juiz de Fora em direção o Rio de Janeiro para ocupar o Ministério da Guerra (embora Brasília tivesse sido inaugurada em abril de 1960, alguns ministérios permaneciam na antiga capital do país), dando início ao golpe.

Não era a primeira vez, diga-se de passagem, que o general Mourão maculava sua biografia com um golpe de Estado. Em 1937, com a patente de capitão, ligado à Ação Integralista Brasileira (AIB), engendrou o falso Plano Cohen, que serviu de justificativa para a implantação do Estado Novo (Mourão, que morreria em 1972, deixou um livro de memórias intitulado A verdade de um revolucionário). Castelo Branco, por seu turno, coordenado com a cúpula golpista, intentava consumar o golpe pouco tempo mais tarde, a 1° de maio, tendo sido surpreendido pela precipitação de Mourão.

Marco inicial do golpe

Em que pese a necessária exiguidade do texto, cabe uma indagação mais profunda a respeito do golpe de 1964. Qual o marco inicial da cadeia de acontecimentos que culminou com a marcha tresloucada do general Mourão?

Testemunha ocular da história – posto que tenha sido líder do governo João Goulart na Câmara dos Deputados e ocupado, pelo período aproximado de um semestre, um dos mais estratégicos ministérios do mesmo governo -, Almino Afonso, em seu livro de memórias publicado no cinquentenário do golpe (1964 na visão do ministro do Trabalho de João Goulart), recua até 1950.

Ele toma por baliza o inconformismo da União Democrática Nacional, a UDN, partido visceralmente antigetulista, em razão da derrota do brigadeiro Eduardo Gomes para Getúlio Vargas na corrida presidencial daquele ano (e que fora a segunda derrota consecutiva da UDN e do brigadeiro, que, em 1946, perdera para o general Eurico Gaspar Dutra, candidato indicado por Vargas para disputar no voto o Palácio do Catete). 

Malfadada uma manobra golpista da UDN, que consistia em não reconhecer a vitória eleitoral de seu oponente, com base na tese estapafúrdia – dado que sem qualquer aporte na Constituição em vigor, promulgada em 1946, mas constante da de 1891 – de que aquele obtivera a maioria, porém, não a maioria absoluta dos votos, tem início mais um período de governo de Getúlio Vargas; “nos braços do povo”, isto é, eleito democraticamente, tal como havia vaticinado ao ser apeado do poder (ressalte-se, em consequência de uma intervenção militar) em outubro de 1945.  

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Militares almoçando em período anterior ao golpe de 31 de março de 1964.
Foto : Arquivo Nacional/Fundo Correio da Manhã

Como realização maior desse retorno de Vargas, a criação da Petrobras, em 1953 – por força de um empenho deliberado do governo em mobilizar a sociedade em prol do monopólio estatal sobre o petróleo – afigura-se, segundo Afonso, como o ponto mais alto de tensão entre o nacionalismo getulista, reverberado pelo PTB, e o “entreguismo” da UDN.

Em todo caso, a criação Petrobras não faz tensionar a relação entre governo e comandos militares, até mesmo porque elementos nacionalistas da oficialidade envolveram-se na campanha “O Petróleo é Nosso” – entre eles, curiosamente, o então reformado general Leônidas Cardoso, pai do futuro presidente Fernando Henrique Cardoso, cujo governo, em 1995, acabaria com o monopólio estatal do petróleo. 

Doutrina de Segurança Nacional

Ocorre que, em 1949, nos estertores do governo de Eurico Gaspar Dutra, criou-se a Escola Superior de Guerra – à semelhança do National War College estadunidense, inaugurado em 1946 -, como “Instituto de Altos Estudos de Política, Defesa e Estratégia”. Vale ressaltar que, enquanto presidente, o general Dutra rompeu relações com a URSS e colocou na ilegalidade o PCB, ato contínuo, cassando os mandatos de seus representantes no Congresso.

Centro reitor do pensamento de grande parte oficialidade a partir de então, a Escola Superior de Guerra preconiza a defesa contra o “inimigo interno”, a saber, o “comunismo”, defesa que se expressa na “Doutrina de Segurança Nacional”. Tendo seu pensamento embebido por uma tal doutrina essencialmente conservadora, assemelhando-se à futura classe média da “Marcha da Família com Deus pela Liberdade” – estrato socioeconômico do qual, outrossim, se fazia a extração dos novos oficiais -, essa oficialidade passa a mirar com desconfiança qualquer movimento reivindicatório que parta da sociedade, bem como iniciativas de governo visando o aprimoramento da legislação do trabalho. 

Por conseguinte, não tardará a fricção entre o governo Vargas e militares conservadores. Esta se dá no momento em que, à frente do Ministério do Trabalho, um ainda quase desconhecido João Goulart determina o reajuste de cem por cento no salário mínimo nacional. Em protesto contra esse reajuste, o então coronel Golbery do Couto e Silva redige o Manifesto dos Coroneis, assinado por 42 coroneis e 39 tenentes-coroneis e dirigido à alta oficialidade.

Divulgado pela imprensa em 20 de fevereiro de 1954, o Manifesto obriga Getúlio Vargas a um recuo, forçando-o a remover Goulart do Ministério do Trabalho dois dias depois. Na raiz das queixas dos coronéis estava a suposta desvalorização do governo em relação ao Exército, ao não atender às suas necessidades de aquisição de novos equipamentos; não promover a melhoria de suas instalações; e, sobremodo, não conceder reajustes salariais que equiparassem seus vencimentos aos de militares de outros países. Finalmente, segundo os coronéis, o reajuste do salário mínimo ocasionaria desinteresse por parte dos jovens em seguir carreira militar, dado que a remuneração em outras atividades se lhes pareceria mais convidativa. 

De Vargas a Brizola

Um pequeno salto no tempo. Em 24 de agosto do mesmo ano de 1954, o presidente Getúlio Vargas, em meio a uma crise política, que era também, e talvez principalmente, uma crise militar – vide o major Rubens Vaz, morto no episódio da rua Tonelero e a consequente instauração da “República do Galeão” -, desfere um tiro contra o próprio coração. A enorme comoção popular causada pela morte do supremo mandatário da nação, costuma-se afirmar, retraiu os ímpetos da UDN e dos militares a ela associados e, destarte, retardou o golpe militar em dez anos.

A afirmação é parcialmente verdadeira. É preciso lembrar que, no ano seguinte, manobras golpistas udenistas-militares, refreadas pelo marechal legalista Henrique Teixeira Lott, almejavam impedir a posse do presidente eleito Juscelino Kubitschek. Alguns anos depois, em agosto de 1961, ante a renúncia inesperada do presidente Jânio Quadros, transcorridos poucos meses de seu governo, os ministros militares tentam impedir a posse do vice-presidente, João Goulart, violando, desse modo, o que estabelecia a Constituição.

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João Goulart e Leonel Brizola.
Foto: Arquivo Senado Federal

 

Uma intensa mobilização popular liderada pelo então governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola – que entrou para a história com o nome de Campanha da Legalidade -, correligionário e cunhado de Goulart, garante a posse deste na presidência da República, no dia 07 de setembro daquele ano. Entretanto, como estivesse o Brasil à beira de uma guerra civil, o Congresso estabeleceu, às pressas, o regime parlamentarista.

Persuadido por Tancredo Neves de que seria esta a melhor fórmula para que se acalmassem os ânimos no país, e para desencanto de Brizola, João Goulart assume a presidência praticamente sem poderes. Somente em janeiro de 1963, mediante um plebiscito, dar-se-ia o retorno do Brasil ao presidencialismo. 

Leonel Brizola, ainda que dispondo da vigorosa Brigada Militar gaúcha, liderara uma campanha ímpar: nada mais improvável, na América Latina do que um governante civil lograr o insucesso de uma tentativa de golpe militar.

Doze anos mais tarde, a tentativa de resistência de Salvador Allende no Palácio La Moneda evidenciaria dramaticamente esta improbabilidade. No Rio Grande do Sul de 1961, todavia, tivera lugar a excepcionalidade – o microfone de uma rádio silenciou os canhões, mesmo que temporariamente.

Nos últimos dias, aliás, neste março de 2025, em virtude da abertura de arquivos secretos da CIA sobre o governo John Kennedy determinada pelo presidente Donald Trump, divulgou-se que China e Cuba ofereceram auxílio à Campanha da Legalidade, agradecido e recusado por Brizola. 

Golpe militar consumado

Um novo salto no tempo. O general Olímpio Mourão Filho, como supradito, deflagra o golpe a 31 de março de 1964.

João Goulart voa do Rio de Janeiro para Brasília. Mais tarde, rumará para Porto Alegre, onde o já então deputado federal Leonel Brizola (eleito em 1962, pelo extinto Estado da Guanabara, com votação recorde) o aguarda junto a um grupo de generais. Destaca-se nesse grupo o general Ladário Telles, recentemente nomeado comandante do III Exército (hoje chamado Comando Militar do Sul).

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Militares nas ruas do Brasil durante o golpe de 31 de março. Foto: Arquivo Nacional/Fundo Correio da Manhã

Telles é um general legalista, e seu exército é o mais poderoso do país. Por isso, Brizola está convencido da viabilidade da resistência ao golpe, embasado pela experiência de 1961. Naquela ocasião, o êxito da Campanha da Legalidade deveu-se a que o então comandante do III Exército, general José Machado Lopes, aderira à mobilização do Rio Grande do Sul em nome da posse de Goulart. Leonel Brizola, uma vez mais, tem a seu lado um ocupante desse importante comando. 

João Goulart aterrissa na capital gaúcha, une-se ao grupo e ouve os arrazoados – Brizola solicita que o presidente o nomeie ministro da Justiça e, a Ladário Telles, ministro da Guerra, a fim de dar início à resistência.

Telles afirma que, além dos contingentes militares que possuía, poderia armar mais cem mil civis; mas argui que, em sendo um militar legalista, apenas poderia começar a agir a partir da ordem expressa do presidente. Essa ordem, contudo, não veio – João Goulart opta por não resistir, alegando não desejar derramamento de sangue do povo brasileiro em nome da defesa de seu mandato.

Decorridos muitos anos, na década de 1980 deu-se a conhecer publicamente a “Operação Brother Sam”, por efeito da qual, no momento do golpe de 1964, havia todo o apoio militar necessário para destituí-lo, fornecido pelos Estados Unidos, incluindo um porta-aviões na costa do Espírito Santo. Estaria o presidente deposto inteirado quanto a esta operação?

O golpe é, então, fato consumado, e Goulart parte para o exílio, onde morrerá, na Argentina, em 1976. Voltaria a adentrar novamente as fronteiras do Brasil dentro do féretro, para ser sepultado em São Borja.   

31 de março ou 1o de abril: o dia da mentira

O golpe de 1964 consumou-se entre os dias 31 de março e 02 de abril, tendo o dia 1° de abril, portanto, como seu termo médio. Por óbvio, a versão prevalecente dos acontecimentos empurrou, no calendário, seu aniversário para trás, no intuito de evitar a identificação jocosa com a data conhecida como o dia da mentira. O dia 31 de março demarca tão-somente o início da movimentação do general Mourão de Juiz de Fora rumo ao Rio de Janeiro. 

Em verdade, o golpe estaria consumado, em sentido político-institucional, apenas na madrugada do dia 02 de abril, quando o senador Auro de Moura Andrade (filho de uma abastada família paulista de fazendeiros e que participara, em São Paulo, da “Marcha da Família com Deus pela Liberdade”), presidindo uma sessão extraordinária, tumultuada e atipicamente breve  do Congresso Nacional, declarou vaga a presidência da República e entregou o comando do país para Ranieri Mazzilli, presidente da Câmara dos Deputados.

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Presidente do Congresso empossa Mazzilli na Chefia da Nação. Decisão tomada na madrugada do dia 2, em apenas 10 minutos de sessão do Congresso. Foto publicada originalmente na revista O Cruzeiro, em 10 de abril de 1964 (edição especial), “A crise vista de Brasília” (p. 57)

O anúncio teve protesto veemente de Tancredo Neves, que, aos gritos, o chamava de “canalha”; mesmo que Andrade soubesse – por meio de um comunicado feito por Darcy Ribeiro, chefe da Casa Civil do governo deposto – que João Goulart, àquela altura, encontrava-se em Porto Alegre, quer dizer, em paradeiro conhecido e dentro do território nacional. A trama conspiratória uniu civis e militares. Ao golpe de fardas, sabres e tanques, agregou-se o de paletós, canetas e infâmias. 


Sobre o autor

Demetrius Ricco Ávila, graduado em Ciências Sociais (UFRGS), mestre em História (PUCRS), doutorando em História (PUCRS), Professor do Instituto Federal Sul-rio-grandense e Secretário de Formação Política do Movimento Cultural Darcy Ribeiro (MCDR)/PDT-RS. Autor do livro Eneida Tropical: O Povo Brasileiro como grande narrativa sobre o Brasil (Class, 2019)

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