Maior massacre do Brasil: governador do RJ comemora; comunidade reage e chora

Moradores, advogados e ativistas denunciam torturas e execuções
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"Tudo isso [são] marcos históricos que gritam a ineficiência da política de segurança pública do Rio". Foto: Pablo Porciúncula/AFP

O número de mortos na operação policial do Rio praticamente dobrou nas últimas horas com os 60 corpos que foram retirados da área de mata do Complexo da Penha. Nas entrevistas coletivas, o governador e os secretários falam em sucesso e que as únicas vítimas foram os policiais. No lado das famílias das comunidades, choro e revolta. Confira com a TVT News o que dizem os moradores e quem acompanhou a retirada de corpos.

Ativistas denunciam massacre em ação policial no Rio

Ativistas e moradores que acompanharam a retirada de mais de 60 corpos de uma área de mata no Complexo do Penha, um dia após a maior operação policial realizada no Rio de Janeiro nos últimos 15 anos, classificam o evento como uma “chacina” e um “massacre” promovidos por forças de segurança. 

O empreendedor Raull Santiago, nascido no Morro do Alemão, foi um dos primeiros a noticiar o encontro dos corpos. Ele usou transmissões ao vivo pelas suas redes sociais.

“Essa é a face da cidade maravilhosa, que é capital na América Latina quando a gente pensa em turismo. E eu amo a minha cidade, o meu estado, a minha favela, mas há esses momentos em que a desigualdade grita, o poder direciona o seu ódio e traz na prática mais brutal possível o seu recado para quem vive em comunidades como a nossa”, lamentou.

Contagem de mortos no massacre

“Infelizmente, pela minha realidade, eu já estou acostumado a ver corpos, baleados, estraçalhados. Mas, [com] isso aqui, eu nunca vou me acostumar”, disse Raull Santiago sobre o choro das mães diante dos corpos de seus filhos.

Nessa terça-feira (28), dia da operação, 64 mortos foram confirmados, incluindo quatro policiais. No entanto, pelo menos outros 70 corpos foram retirados por moradores de áreas de mata. Seis foram localizados no Complexo do Alemão e deixados no Hospital Estadual Getúlio Vargas durante a noite, e outros 64 foram encontrados no Complexo da Penha e reunidos em uma praça da comunidade, de onde foram recolhidos posteriormente pelo Corpo de Bombeiros. 

Se não houver duplicidade nos números e se todos os corpos encontrados realmente tiverem sido vítimas da operação, o número de mortos pode passar de 130

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O número de vítimas no RJ inclui 128 civis e quatro policiais. O total de mortes ultrapassa a chacina do Carandiru, em 1992. Imagem: Cesar Sales

“Tanto essas execuções, quanto os policiais que morreram, tudo isso [são] marcos históricos que gritam a ineficiência da política de segurança pública do Rio de Janeiro. Ou, pior que isso, a eficiência dela, a forma como ela é desenhada, estruturada, pensada e aplicada para lidar com algumas vidas”, afirmou Santiago.

“Da favela para dentro, tiro, porrada, bomba, invasão, desrespeito, chacina, massacre. Em outros endereços, o tratamento é quase vip”, criticou. 

Responsabilização pelo massacre

O presidente da organização não governamental Rio de Paz, Antônio Carlos Costa, também acompanhou a retirada dos corpos nesta manhã e pediu responsabilização do governador do estado, Cláudio Castro, pela tragédia. Ele lembrou, entretanto, que esse episódio se assemelha a muitos outros já ocorridos no estado. 

“O que há de novo nesse massacre? Apenas a sua extensão, a quantidade de mortos… O que não há de novo é essa política de segurança pública, a destruição da vida do morador de comunidade. Quando ouvimos as respostas sobre a operação, ouvimos o que foi falado há 40, 50 anos atrás”, lamentou.

“As causas desse gravíssimo problema social já foram elucidadas, mas por que medidas tão óbvias não são implementadas? Porque falta vontade política. Porque quem morre são os moradores de comunidades e porque são eleitos homens que conseguem chegar aos mais altos postos com o discurso do “bandido bom é bandido morto”, completou o presidente da ONG Rio de Paz. 

O governador do Rio de Janeiro, Claudio Castro, tem defendido a megaoperação. Segundo ele, a ação foi planejada ao longo de seis meses, como resultado de mais de um ano de investigações, contou com o aval do Poder Judiciário e foi acompanhada pelo Ministério Público do estado. 

Especialistas ouvidos pela Agência Brasil criticaram a ação que gerou um grande impacto na capital fluminense e não atingiu o objetivo de conter o crime organizado. Para a professora do Departamento de Segurança Pública da Universidade Federal Fluminense (UFF) Jacqueline Muniz, a operação foi amadora e uma “lambança político-operacional”.

Federação das favelas

Movimentos populares e de favelas também condenaram as ações policiais e afirmaram que “segurança não se faz com sangue”.  A Federação das Associações de Favelas do Rio de Janeiro (Faferj) divulgou nesta quarta-feira (29) uma carta pública de repúdio contra o que foi chamado de “massacre dos Complexos da Penha e do Alemão”. 

“Os relatos de horror que emergiram dessas comunidades – com cenas de guerra, execuções sumárias, violação de domicílios, impedimento de socorro a feridos e a total suspensão dos direitos mais básicos – não são incidentes isolados. São a face mais crua de uma política de segurança pública falida e genocida, que há décadas trata as favelas e seus moradores como territórios inimigos e cidadãos de segunda categoria”, diz o documento. 

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Familiares choram os mortos na ação policial. Moradores retiram cerca de 60 corpos em área de mata após operação. Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil

A Faferj também manifestou indignação por acreditar que a vida dos moradores das favelas está sendo tratada como “dano colateral em operações que, sob o pretexto de combater o crime, semeiam terror, luto e trauma coletivo.” Diz assim que a política de segurança atual apenas “aprofundou o abismo social, naturalizou a violência de Estado e perpetuou um ciclo de morte que só interessa ao projeto de extermínio da população pobre e negra deste país.”

Além das palavras de repúdio, o documento traz também reivindicações da organização, como a “desmilitarização das abordagens policiais nas favelas” e a construção de uma nova política de segurança pública pautada pelo cuidado e pela garantia de direitos. 

Para a Federação, um “sistema que funcione” precisa contemplar também políticas de educação, com escolas em tempo integral, lazer, com a criação e manutenção de espaços de convivência e cultura. A Faferj reivindica ainda medidas de emprego e renda, como capacitação e criação de vagas formais, e de habitação, como saneamento básico, urbanização e regularização fundiária.

“Segurança se faz com presença do Estado, não com invasão. Com políticas sociais, não com políticas de morte. Com vida digna, não com luto permanente”, conclui o documento.

Tâmara Freire – Repórter da Agência Brasil

Massacre no Rio supera o do Carandiru e aumenta a repercussão

A repercussão do massacre foi imediata. Em redes sociais, políticos e ativistas denunciaram o que chamam de “chacina de Estado”. A deputada Erika Hilton (Psol-SP), fez um histórico do fracasso. “O Rio de Janeiro vive uma das maiores chacinas da história recente: mais de 120 mortos, superando o Carandiru. O governador Cláudio Castro transforma a praça pública em necrotério e faz da morte um palanque, tentando recuperar popularidade com sangue”, disse.

“Em vez de sufocar o crime com inteligência onde ele se organiza e lucra nas zonas nobres, nos paraísos fiscais e nos gabinetes dos criminosos, milicianos de colarinho branco, o Estado escolhe matar sem critério nas favelas, entre quem já sofre com a pobreza, o desemprego e a ausência de politicas de estado para além de um projeto falido de massacre, que governa o Rio há mais de 20 anos. É um projeto de poder construído sobre corpos negros e periféricos”, completou.

Já vereador de Belo Horizonte Pedro Rousseff (PT) escreveu: “O governador bolsonarista Cláudio Castro é 100% responsável pela guerra que o Rio de Janeiro sofre hoje. Ele foi contra a PEC da Segurança que o presidente Lula enviou ao Congresso e mentiu ao dizer que o governo federal recusou ajuda. Hipócrita e mentiroso.”

Organizações de direitos humanos apontam indícios de tortura e execuções. Vídeos e fotos que circulam entre moradores mostram corpos com sinais de tiros à queima-roupa e marcas de espancamento.

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Famílias se reúnem para fazer o reconhecimento dos corpos na Penha. Foto: Tomaz Silva /Agência Brasil

O que foi o Massacre do Carandiru

O Massacre do Carandiru foi uma das mais graves violações de direitos humanos da história recente do Brasil. O episódio ocorreu em 2 de outubro de 1992, dentro da Casa de Detenção de São Paulo, conhecida como Carandiru, quando uma rebelião de presos no Pavilhão 9 foi contida de forma violenta pela Polícia Militar. A ação resultou na morte de 111 detentos, todos desarmados, segundo investigações posteriores.

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Pavilhões da Casa de Detenção do Carandiru. Número de mortos na Operação Contenção do Rio de Janeiro é maior que Massacre do Carandiru. Foto de 1975 do Pátio da Casa de Detenção de São Paulo e três dos seus pavilhões. Imagem da coleção de imagens do extinto jornal “Aqui São Paulo” sob a guarda do Arquivo Público do Estado de São Paulo

A operação foi comandada pelo então coronel da PM Ubiratan Guimarães e se tornou símbolo da violência institucional e da desumanização da população carcerária. Nenhum policial morreu durante a ação, o que levantou suspeitas de execuções sumárias. O episódio ganhou repercussão nacional e internacional, expondo a precariedade do sistema prisional brasileiro e a ausência de políticas públicas voltadas à reintegração social dos presos.

Apesar de diversos julgamentos e apelações, o caso ficou marcado pela impunidade e pela lentidão da Justiça. O massacre também inspirou debates, livros e filmes — entre eles Estação Carandiru, de Drauzio Varella — e permanece como um lembrete trágico da necessidade de garantir direitos humanos e dignidade para todas as pessoas, mesmo em situação de privação de liberdade.

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