De mala, chuteiras e sonho: há 130 anos o futebol chegava ao Brasil com Charles Miller

A história começou em 1895 e, desde então, o esporte se tornou parte da nossa identidade
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Charles Miller é considerado o pai do futebol brasileiro. Reprodução: Wikipedia

Em 14 de abril de 1895, no bairro do Brás, em São Paulo, o paulistano promoveu a primeira partida de futebol no Brasil. O confronto entre funcionários da São Paulo Railway e da Companhia de Gás deu o pontapé inicial para uma paixão que atravessaria gerações. Tudo começou ali — e a TVT News te conta o porquê.

Quem foi Charles Miller?

Charles William Miller nasceu em 24 de novembro de 1874, em São Paulo, na rua Monsenhor Andrade, n° 24, no bairro do Brás. Era filho de um imigrante escocês, John Miller, e Carlota Alexandrina, uma brasileira filha de ingleses.

Quando tinha dez anos, viajou para a Inglaterra, enviado pelos pais para seguir seus estudos, na Banister Court School, localizada na cidade de Southampton. Na sua passagem pelo país inglês, Charles conheceu o futebol. E logo o novo aluno se notabilizou por ser um jogador hábil, atuando por dois clubes, o St. Mary’s (futuro Southampton) e o Corinthian Football Club (que inspirou, posteriormente, a fundação do Corinthians Paulista).

Pela rapidez com que jogava, Charles foi apelidado “Nipper” – gíria para moleque veloz, rápido.

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Charles Miller entre os companheiros do S.P.A.C.. Reprodução: Museu do Futebol

Quando voltou ao Brasil e a São Paulo, em 1894, desembarcando no Porto de Santos, o paulistano trouxe da Inglaterra um livro de regras do futebol, duas bolas, uma bomba de ar para enchê-las, um par de chuteiras e duas camisas de times que defendeu. Charles ficou, então, conhecido como o principal pioneiro no advento do futebol no Brasil, ao trazer para o país as regras estabelecidas na Inglaterra. 

Foi dele a ideia de organizar o primeiro jogo oficial entre dois times em solo brasileiro. A data: 14 de abril de 1895. O local: o campo do São Paulo Athletic Club, na Várzea do Carmo- Brás. O resultado: 4 a 2 para o São Paulo Railway. Mas o placar era o que menos importava, ele estava fazendo história.

Charles jogou futebol entre 1896 e 1912. Depois, seguiu no esporte, como árbitro – além de figurar em outras modalidades, como o críquete, Morreu em 30 de junho de 1953. 

Uma das curiosidades sobre o jogo foi revelada em 1942, em entrevista para o jornalista Thomaz Mazzoni, da Gazeta Esportiva, Miller afirmou que havia bois no campo. “Ao chegar ao capinzal, a primeira tarefa que realizamos foi enxotar os bois da Companhia Viação Paulista, que tosavam a relva pacificamente. Alguns companheiro jogaram mesmo de calças compridas, por falta de uniforme adequado.”

Charles Miller também foi o artilheiro do primeiro campeonato disputado no Brasil, o Paulista de 1902, marcando dois gols em nove jogos, além de atuar como goleiro em doze partidas. Após pendurar as chuteiras em 1910, ele também se dedicou à arbitragem, atuando em vinte jogos. Em homenagem ao  seu legado, a Praça Charles Miller, onde fica o Estádio do Pacaembu e o Museu do Futebol, leva seu nome e celebra sua contribuição histórica ao futebol brasileiro.

Estádio Pacamebu, na Praça Charles Miller/SP

O Brasil do final do século XIX

Naquele fim de século, o Brasil ainda engatinhava na industrialização. A escravidão havia sido abolida apenas sete anos antes, e a República era recente. O futebol, inicialmente visto como um esporte da elite, demorou a se popularizar entre as classes trabalhadoras e a população negra, que precisou vencer décadas de preconceito e exclusão para ocupar os gramados.

Inicialmente praticado apenas pela alta sociedade, o esporte passou a ser adotado também por trabalhadores das fábricas. Os primeiros clubes formados por operários foram o Bangu, no Rio de Janeiro — ligado à Fábrica de Tecidos Bangu — e o Juventus, em São Paulo, fundado por funcionários da indústria Crespi.

Com o avanço da industrialização e a chegada de imigrantes que compunham a mão de obra estrangeira, o futebol se tornou ainda mais difundido, especialmente durante as décadas de 1920 e 1930. Nesse período, multiplicaram-se os clubes formados por trabalhadores de baixa renda e por imigrantes que atuavam nas fábricas.

Outro ponto fundamental para a história e disseminação do futebol foi a presença de jogadores negros nos clubes. Até os anos 1920, os times eram compostos majoritariamente por integrantes da elite ou por trabalhadores brancos. Pesquisas apontam que o primeiro time a aceitar jogadores negros foi o carioca Bangu, embora isso ocorresse de forma limitada.

Em São Paulo, a criação do Sport Club Corinthians Paulista, em 1910, marcou um momento importante. Fundado por trabalhadores do bairro do Bom Retiro — pintores, cocheiros e operários em geral —, o clube introduziu a ideia do “time do povo”, abrindo espaço para brancos e negros no futebol paulistano.

Com isso, os clubes periféricos, formados por jogadores fora da elite, começaram a se destacar por sua habilidade. Essa movimentação impulsionou um processo que levaria à profissionalização do futebol. A elite, que defendia a manutenção do amadorismo, via o futebol profissional como uma ameaça à exclusividade de sua prática esportiva. No entanto, o aumento de times formados por operários e a prática do “bicho” — recompensa paga por vitória — mostravam que o futebol já não era mais restrito às classes altas, como foi no final do século XIX.

Em 1916, foi criada a Confederação Brasileira de Desportos (CBD), que defendia a permanência do modelo amador. Mesmo assim, já havia campeonatos interestaduais e jogos contra clubes estrangeiros. Em 1919, o Brasil conquistou seu primeiro título internacional no Campeonato Sul-Americano, e participou da primeira Copa do Mundo em 1930.

Aos poucos, clubes operários e times de várzea foram surgindo em São Paulo, Rio de Janeiro e outras capitais, democratizando o acesso ao jogo e transformando o futebol em ferramenta de inclusão e resistência social.

Somente em 1933 o futebol se tornou oficialmente uma profissão no Brasil, com a criação das Ligas Profissionais nos estados do Rio de Janeiro e São Paulo. Nesse mesmo ano, foi realizado o primeiro campeonato profissional, vencido pelo Palestra Itália — nome anterior do atual Palmeiras.

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Time do Palestra Itália (atual Palmeiras) durante o Campeonato Paulista de 1920. Reprodução: Palmeiras

Início dos negros no futebol brasileiro

AnoEvento
1900O ferroviário Miguel do Carmo, um dos fundadores da Ponte Preta-SP, é considerado o primeiro jogador negro do futebol brasileiro.
1904Times populares são fundados em Salvador, entre eles, o Fluminense-BA e o 7 de Setembro, futuro Ypiranga-BA, conhecido como “clube dos estivadores”.
1907Clubes e Ligas de várias capitais começaram a proibir a inscrição de jogadores negros nos campeonatos. Desde 1904, ligas suburbanas, populares ou negras vinham se formando no país.
1920Foi fundada, no Rio Grande do Sul, a Liga Nacional de Foot-Ball Porto Alegrense, jocosamente chamada de “Liga da Canela Preta”.
1921O presidente Epitácio Pessoa proibiu a convocação de jogadores negros para a disputa do Campeonato Sul-Americano, na Argentina. Um ano antes, atletas brasileiros foram chamados de “macaquitos” pela imprensa argentina.
1922O time negro da Associação Atlética São Geraldo-SP foi campeão municipal de São Paulo no ano do centenário da Independência do Brasil.
1924O Vasco da Gama-RJ recusou a proposta de excluir doze de seus jogadores para continuar na principal liga do Rio de Janeiro. O presidente vascaíno escreveu uma carta que ficou conhecida como “A resposta histórica”. No ano anterior, em sua estreia na Primeira Divisão, o campeão carioca contou com um time de negros, pobres, operários e analfabetos.
1933No início oficial do futebol profissional no Rio de Janeiro, o Bangu-RJ sagrou-se campeão carioca da Primeira Divisão com um time cheio de negros. Mesmo com o profissionalismo, a discriminação racial não deu trégua.
1938Na Copa da França, o atacante brasileiro Leônidas da Silva marcou sete gols, terminando como artilheiro e levando o apelido de “Diamante Negro”. Mesmo sendo ídolo, três anos depois, foi preso, denunciado pelo próprio clube por falsificar um atestado de reservista.







Clubes pioneiros

ClubeData de FundaçãoLocal
São Paulo Athletic Club13 de maio de 1888 (futebol a partir de 1896)São Paulo, SP
Associação Athletica Mackenzie College18 de agosto de 1898São Paulo, SP
Sport Club Internacional19 de agosto de 1899São Paulo, SP
Sport Club Germânia (atual Esporte Clube Pinheiros)7 de setembro de 1899São Paulo, SP
Sport Club Savóia (atual Clube Atlético Votorantim)1º de janeiro de 1900Votorantim, SP
Sport Club Rio Grande19 de julho de 1900Rio Grande, RS
Associação Atlética Ponte Preta11 de agosto de 1900Campinas, SP
Club Athletico Paulistano30 de novembro de 1900São Paulo, SP
Rio Cricket and Athletic Association (atual Rio Cricket Associação Atlética)15 de agosto de 1897 (futebol a partir de 1901)Niterói, RJ
Rio Cricket Club (atual Paissandu Atlético Clube)15 de agosto de 1872 (futebol a partir de 1901)Rio de Janeiro, RJ
Club de Cricket Victoria (atual Esporte Clube Vitória)13 de maio de 1899 (futebol a partir de 1902)Salvador, BA
Esporte Clube 14 de Julho14 de julho de 1902Santana do Livramento, RS
Fluminense Football Club21 de julho de 1902Rio de Janeiro, RJ
Club Athletico Internacional7 de novembro de 1902Santos, SP
Associação Athletica das Palmeiras9 de novembro de 1902São Paulo, SP

Futebol como identidade nacional

Ao longo do século XX, o futebol deixou de ser apenas um esporte no Brasil para se transformar em um elemento central da identidade cultural do país. Com a profissionalização, vieram os grandes clubes, os estádios lotados e, principalmente, os ídolos que representavam o sonho do povo. Leônidas da Silva, Garrincha, Pelé e tantos outros marcaram época com seus dribles, gols e carisma. O futebol passou a simbolizar a alegria, a criatividade e a capacidade de superação do povo brasileiro.

O auge desse processo simbólico ocorreu em 1970, com a conquista do tricampeonato mundial no México. Liderada por Pelé, a Seleção encantou o mundo com um futebol ofensivo, habilidoso e envolvente. Mas a vitória em campo foi usada politicamente pela ditadura militar (1964-1985), que tentou associar o sucesso da Seleção ao suposto progresso do país. Frases como “Brasil: ame-o ou deixe-o” circularam enquanto a repressão e a censura ainda dominavam o cotidiano da população. A festa do tricampeonato, transmitida ao vivo para o mundo, serviu como ferramenta de propaganda do regime.

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Pelé – Brasil x Itália – Copa do Mundo 1970. Reprodução: FIFA

Mesmo com esse contexto político, o futebol seguiu sendo motivo de orgulho para os brasileiros. O país construiu uma das mais ricas histórias no esporte mundial.

A exclusão das mulheres dos gramados

Mas nem todos estavam incluídos nessa história. Durante décadas, o futebol feminino foi sistematicamente silenciado. 

Em 1940, o time de mulheres do Primavera-RJ vinha fazendo muito sucesso , tinha até uma excursão programada para jogar fora do Brasil, feito ainda inédito. 

O fato acabou causando uma caça contra Carlota Alves de Rezende, diretora da agremiação, acusada injustamente de “exploração sexual das jogadoras”.

Carlota foi presa e virou símbolo da perseguição ás futebolistas.

Em 1941, o regime de Getúlio Vargas, através do Conselho Nacional de Desportos, proibiu oficialmente a prática de futebol por mulheres, alegando que o esporte era “incompatível com a natureza feminina”.

A proibição durou até 1979 — e, na prática, até os anos 1980, quando surgiram as primeiras seleções oficiais. Foram anos de apagamento, desestímulo e resistência. Ainda hoje, o futebol feminino luta por espaço, visibilidade e investimento, enfrentando os ecos de uma história marcada por machismo e exclusão.

Conheça mais curiosidades sobre o futebol com a TVT News:

O Brasil é o maior campeão da história das Copas do Mundo, com cinco títulos:

  • 🏆 1958 – Suécia
  • 🏆 1962 – Chile
  • 🏆 1970 – México
  • 🏆 1994 – Estados Unidos
  • 🏆 2002 – Coreia do Sul e Japão

Pelé com a taça da Copa do Mundo de 1958 Reprodução: FIFA

Além disso, o Brasil é o único país a participar de todas as edições da Copa do Mundo Masculina desde 1930. Nenhuma outra nação conseguiu esse feito.

Seleção Feminina

O Brasil também tem presença marcante no futebol feminino, participando de todas as edições da Copa do Mundo Feminina desde a estreia do torneio, em 1991. Embora o título mundial ainda não tenha vindo, a Seleção Feminina tem histórico de grandes campanhas, com destaque para:

  • 🥈 Vice-campeonato mundial em 2007
  • 🥈 Medalhas de prata nos Jogos Olímpicos de 2004 (Atenas) e 2008 (Pequim)
  • 🌟 Geração de jogadoras históricas, como Marta, Formiga e Cristiane, que ajudaram a consolidar o respeito internacional pela equipe. 

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Marta com sua terceira medalha de prata das Olimpíadas; Rainha é a maior medalhista do futebol brasileiro Reprodução: Rafael Ribeiro/CBF

Primeiro estádio do país

O Velódromo de São Paulo foi inaugurado em 15 de setembro de 1895. Financiada pela tradicional família Silva Prado, a primeira reforma aconteceu no ano seguinte, quando o local recebeu dois conjuntos de arquibancadas cobertas de madeira. Um campo de futebol foi adaptado no espaço interno da pista de ciclismo em 1900. O primeiro jogo de futebol ali aconteceu em 3 de junho daquele ano entre Internacional-SP e Germânia-SP). A Praça esportiva foi demolida no início de 1916.

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Velódromo Paulistano, foi um dos primeiros espaços na cidade de São Paulo voltado à exibição pública de esportes. Reprodução: Museu do Futebol

Primeira torcida organizada

A primeira torcida organizada reconhecida no país é o Grêmio São-Paulino, criado em 1939 por Manoel Raymundo Paes de Almeida, que posteriormente se tornaria dirigente do clube. Pouco depois, o grupo mudou de nome para “Torcida Uniformizada do São Paulo (TUSP)”, que deu origem à atual Torcida Tricolor Independente.

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TUSP na passeata da comemoração do título paulista de 1943. Reprodução: Arquivo Histórico do SPFC

Torcida de mulheres

A “Flu Mulher”, criada em 2006, no Rio de Janeiro, foi a primeira torcida organizada exclusivamente para mulheres do Brasil. A ideia partiu de Kaká Soares, torcedora apaixonada do Fluminense. Em 2009, surgiu em Porto Alegre a “Força Feminina Colorada”, criada por Jéssica Maciel, Patrícia Belém e mais outras quatro torcedoras do Internacional-RS.

Primeira torcida LGBTQIAPN+

Já existiam casos esparsos de torcidas formadas por pessoas LGBTQIAPN+, no Rio de Janeiro e Minas Gerais, na década de 70. A primeira torcida integrada do Brasil foi a “Coligay”, do Grêmio-RS, criada em 1977 pelo empresário gaúcho Volmar Santos. O nome da torcida vem de “coliseu”, nome da casa noturna de Volmar.

Torcida organizada Coligay. Reprodução: Wikimedia Commons

Democracia Corinthiana

Nos anos 1980, em meio à redemocratização do Brasil, o Corinthians viveu um momento único: os jogadores passaram a participar das decisões administrativas do clube, votando em conjunto com comissão técnica e dirigentes. Liderado por nomes como Sócrates, Casagrande, Zenon e Wladimir, o movimento ficou conhecido como “Democracia Corinthiana” e usava o futebol como forma de expressão política e social, defendendo valores como liberdade e participação popular.

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Meio-campista é um dos grandes ídolos do Corinthians e disputou as Copas do Mundo de 1982 e 1986. Reprodução: CBF

Clássico Vovô

O clássico entre Botafogo e Fluminense é o mais antigo do futebol brasileiro. Por isso passou a ser chamado de “Clássico Vovô”. O primeiro ocorreu em 13 de maio de 1906, com goleada de 8×0 do Fluminense.

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