Por Lucas Scaravelli da Silva
Na esteira das comemorações do Globo de Ouro e do Oscar conquistados pelo brilhante filme Ainda Estou Aqui – homônimo da produção literária de Marcelo Rubens Paiva – que retrata a trajetória de sua mãe, Eunice Paiva, após o sequestro e morte de seu marido Rubens Paiva durante a ditadura civil-militar (1964-1985), o Brasil celebrou o poder do cinema de resgatar memórias e denunciar injustiças históricas. No entanto, enquanto algumas histórias são projetadas nas telas do cinema, outras seguem ocultas, sem o devido reconhecimento.
A professora Eunice é retratada diante da complexidade de criar sua família e reconstruir seu caminho após a fatídica realidade da perda perversa para a ditadura. Os desafios de reunir a família, dar conta do cotidiano e redesenhar sua carreira profissional sem a presença do marido, desafios que na realidade cotidiana de centenas de milhares de mulheres no Brasil e no mundo é condição sine qua non para a (re)existência.
A história de Sueli Alves da Luz, de 65 anos, se encaixa nessa realidade. Mulher negra e periférica, demorou 44 anos para conseguir falar sobre o assassinato de seu marido, Robson da Luz, morto em maio de 1978 pela ditadura após ser acusado de furtar frutas em Guaianases, bairro da zona leste de São Paulo. Um caso que, diferentemente de outros, nunca encontrou ecos na história oficial do Brasil.
Porém, há a necessidade de falar sobre os desafios de outras sujeitas históricas, deste mesmo advento horrível da ditadura no Brasil, e que “sempre estiveram aqui”. Independente do ciclo histórico, mas nas subalternidades, nas margens e nas periferias dos relatos, deram sempre conta de seguir, realinhar, reinventar e sobretudo reexistir como obrigação de vida.
Talvez a Eunice negra tenha outra realidade socioeconômica, embora esteja imbuída da existência de gênero. Sueli Alves da luz, 65 anos, demorou 44 anos para poder falar sobre sua história, porque pessoas como ela, vindo de onde veio, não tiveram e ainda não possuem o direito a voz e a escuta.
Ditadura, memória e reparação
Graças ao trabalho de pesquisadores e de organizações sociais como o Centro de Pesquisa e Documentação de Guaianases (CPDOC-Guaianás), o caso da ditadura foi desarquivado e trouxe Sueli novamente ao centro da narrativa. Pesquisadores do núcleo de Antropologia da USP também se debruçam sobre o tema. O desarquivamento do caso serve de memória e reparação, mas não deve produzir efeitos contra os assassinos. Estes passaram por processo criminal ainda durante a ditadura e foram exonerados, à época, da polícia.
O Caso Robson da Luz, é o único caso iniciado na justiça e que vence a ditadura durante a própria ditadura, porém os documentos não foram nem sequer considerados e/ou citados na Comissão Nacional da Verdade, segue ainda sendo uma história oculta e não política, como a morte de milhares de jovens negros periféricos por repressão policial, e a vida de Sueli como a de milhares mulheres negras e periféricas que de uma forma ou de outra, sempre estiveram aqui e não são sequer retratadas como modelo de superação e resiliência.
Na entrevista a seguir, a viúva viu a oportunidade como única para encerrar o grito e a voz presa na garganta durante anos.
O relato de Sueli sobre a ditadura integrou documentários, como “Robson da Luz: A morte que fez nascer o movimento negro”, e uma série do Globoplay, “Resistência Negra”. Mas, ainda assim, a dor de Sueli e de tantas outras mulheres negras segue sendo uma história de invisibilidade.
Em uma tarde fria, na Vila Popular em Guaianases, extremo leste de São Paulo, Sueli recebeu a reportagem para contar sua história, uma que nunca ganhou a mesma atenção que a de outras vítimas da ditadura. Ela aceitou contar como sua voz nunca pode ser escutada da mesma maneira de Eunice Paiva. Parafraseando João Cabral de Mello Neto, Sueli Luz, segue sendo Severina como muitas vidas às margens Severinas e herdeiras das dores, dúvidas e medos da ditadura no Brasil.

TVT News: Boa tarde, muito obrigado por nos receber! Qual seu nome completo?
SUELI: Sueli Alves da Luz. O Luz é por causa do casamento.
TVT News: Fala um pouco de você, onde você nasceu?
SUELI: Eu não sei, eu só sei que foi em Pernambuco. Eu sou Pernambucana. Minha vó me trouxe para São Paulo, então fui criada em São Paulo.
Mas a minha avó me trouxe, porque… Minha mãe, ela teve um problema na gravidez, no parte dela. Depois do parque e ficou meia -doida.
TVT News: Aí você veio para São Paulo aonde?
SUELI: Eu fui morar… Aqui em cima no Santa Cruz. Perto do igreja que é o Mato Santa Cruz. Cresci aqui. Praticamente. Minha escola… Eu estudei aqui no Madre João. Eu já estudei muito pouco. Só fiz até a quinta série.
TVT News: E aí parou?
SUELI: Parou aí porque a gente era muito pobre. Eu dependia da minha avó e do meu avô. E eles não tinham condições. Aí então parou.
Eu trabalhei em uma fábrica de bolacha, trabalhei em uma oficina de costura. Tinha uns 14, 15 anos. Aí todo mundo tinha de se virar.
TVT News: Como é que foi esse processo de conhecer o Robson?
SUELI:O Robson foi um bailinho no bairro. No bairro? É, ele não se encantou com ninguém, se encantou com a minha irmã.
Mas aí ele chamou ela para dançar. Ela falou “ai não sei dançar, não”. Aí ele falou assim “agora você vai me deixar no vácuo? Sobrando?” Aí ela falou assim “a minha irmã sabe dançar”. Aí ele pulou para mim e ela descansou.
TVT News: E aí como é que foi depois?
SUELI: Depois namoramos 5 anos.
TVT News: Mas depois do baile, ele foi atrás de você?
SUELI: Foi. Foi atrás de mim. Nós ficamos juntos. Aí namoramos 5 anos. Depois de 5 anos, fiquei grávida.
TVT News: Quantos anos você tinha quando você pensava?
SUELI: Eu tinha 14 ou 15 anos. Ele era mais velho que eu 1 ano. Então, ele também estava na beira do seu 16 por aí.

TVT News: Ele morava aqui em Guaianases?
SUELI: Já morava aqui. Nessa casa. Com a mãe dele e o pai morava no Ipiranga, não convivia com ele. Namoramos dos 15 aos 19. Eu acho que depois de 19, 18 anos eu fiquei grávida.
Quando o Robson foi morto eu estava grávida de seis meses do segundo filho.
TVT News: E como foi o Casamento?
SUELI: Meus avós forçaram, sabe? Naquele tempo não podia ficar, a mãe solteira, não era bem vista.
TVT News: E como era a vida com ele?
SUELI: Quando nós estávamos morando aqui? Era a mil maravilhas. Depois ele foi morar com o pai dele… E eu tive que ficar sozinha com a mãe e a tia dele, aqui. Elas não queriam eu aqui com eles. Então o que é que eu fiz? Eu peguei minhas coisas e fui embora com o meu filho. Eu não tinha amizades, estava sozinha com os filhos, eu acho que quando você tem de passar ninguém passa por você
Porque quando ele morreu… Todo mundo… Me tratou como um bicho. Era um bicho que ninguém queria. Deixou. Eu grávida… Sem dinheiro… Sem ninguém… Polícia me ameaçando… Um filho pequeno para dar comida…
Ninguém tem amparo. Então, quer dizer… Não é boa se acordar sozinho. Hoje, então é claro que não é justo acabar com quem está caindo.
Então, a família dele, a polícia, todos, me maltrataram muito.
TVT News: E como foi quando aconteceu o espancamento e assassinato de Robson?
SUELI: Deixa eu ver.. Bateram muito nele e levaram para o Hospital das Clínicas. Quando bateram ele, Levaram ele para dois hospitais.. Um em São Miguel..
E por último.. Levaram ele para as Clínicas. Por lá que ele morreu. Eu tive acesso nos dois, tive auxílio de uma tia dele que trabalhava no Hospital e me ajudou a entrar e me dar notícias.
Eu primeiro tive um auxílio do Zezé. Um amigo do meu irmão, um amigo da família. Da minha família. Aí eu tive acesso com o Zezé. Quando ele ficou em São Miguel. Depois… Ele tirei ele de lá.
TVT News: Uma coisa que te ajudou muito a enfrentar a situação foi o terreiro de candomblé que vocês frequentavam, não é? Conte mais sobre isso…
SUELI: Mas o terreiro funcionou, era vizinho… Porque da minha casa eu conseguia escutar.. Aí quando eu me de por mim, já estava bem no terreiro..
Eu comecei a frequentar o terreno. Depois parei.. Hoje eu não frequento mais não.. Daí a Dona Teresa morreu, eu comecei a frequentar do Sr. Modesto. Aqui perto, na esquina.
Tenho. Tenho. Tenho dois resistentes. O de… De nascimento ou de casamento? É. É porque você… Você acaba sem um dois, né? Porque quando você vai cavar e vestir… Um resisto… Dá uns dois para você.
TVT News: Como foi enfrentar e seguir a vida com dois filhos do Robson, após a morte dele?
Sueli: Nesse tempo que o Robson faleceu, começou um movimento de justiça pra tentar, enfim, prender os policiais que fizeram a tortura, tiveram todo um reconhecimento. E o julgamento não foi bom não, porque eles quiseram me pôr como prostituta e uma coisa que eu não sou. É eu escutei no rádio, o Gil Gomes também falando, que eu era uma mulher que o Robson catou na esquina, ele não me catou na esquina, eu não deixei quieto, liguei para falar no programa do Gil Gomes, e falei que eu não sou uma mulher de esquina.
Ah, então, eles falaram um monte de coisa no julgamento, sabe? Quem pagou fui eu, então, que são as coisas que eu deixo para trás, sabe? Porque eu acabei ficando doente.
TVT News: E nem as pessoas do movimento negros estavam te acompanhando?
SUELI: Tava, tinha, estava assim, tinha gente lá, tinha muita gente. Mas, assim… Aqui é machuca também, né, a gente, eu já estava machucada. Ainda grávida ainda está mais sensível ainda. Aí as pessoas não pensam quem está pagando, sabe?
O Robson não tinha necessidade de estar fazendo nada de errado. Tinha comida. Depois foi o meu filho também, também foi assassinado.
TVT News: Então o filho que você estava esperando, anos depois foi morto também?
SUELI: Sim. Ele saiu daqui para trabalhar. Saiu com 7 reais no bolso. Ele foi assassinado. Eu descobri. Um homem que eu nunca tinha visto na minha vida, veio aqui e falou que ele está machucado lá no hospital.
TVT News: Seu filho tinha a mesma idade do pai quando foi assassinado?
SUELI: Sim com 21 anos. A mesma idade do pai dele. Não sabemos a motivação, trabalhava no supermercado.
Depois que ele morreu.. eu ficou sem ter pra onde ir.. os policiais ameaçavam.. A minha minha família insegura. Você sabe assim, coisas de terror,eu tinha medo.. E as pessoas aqui também tinham medo.. Então, batiam na porta quando você ia abrir não tinha ninguém, mas tinha um brilhete lá – “Para de mexer, senão eu mato você. E mato quem tiver com você”. Então, assim, a minha família… Ficou em pânico. Quem quer morrer? Eu ia na casa da minha avó e minha avó falava… Olha aqui… Toma banho, come, se quiser deixar o menino… Deixa, mas eu não quero você aqui. Aí, na casa da minha tia… Minha tia falava assim…
Olha… Eu tenho 7 filhos… Come, toma banho, veste a roupa das meninas… Mas eu também não quero você aqui porque que eu posso morrer. Então, quer dizer… Ninguém quer ver… Sabe o que eu queria? Tava dentro dessa casa grande… Sozinha… Chorando o dia inteiro com o filho. Era a única coisa que eu fazia. Eu chorei um dia e estava pensando… Sabe o que é tanta agonia que você quer comprar algo para resolver Aquilo que você está sentindo? Eu sentei… Porque meu portão era ali. Aonde que tem portãozinho de ferro? Aí, sentei no degrau… E comecei a chorar.
Eu falei… Meu Deus… Porque não quero viver assim. Sabe o que é isso? Chorei tão alto, que meu vizinho passou e viu a cena, e eu contei meu sofrimento, estando gravida, nem enxoval eu conseguia comprar, e eu estava pedindo para que Deus me matasse.
Aí a Teresa do Terreiro me levou para a casa dela, eu passava praticamente ao dia inteiro na casa da dona Terezinha, comia e recebia auxilio dela e dos vizinhos.
Para comprar leite, para comprar fralda para o meu filho. Então você tem que se virar. Então, a minha vida foi isso ele durava comigo, não, o melhor não teve, não tinha obrigação.
Eu tinha dois filhos, e esses dois filhos precisavam de mim. Então, eu arregacei minhas mangas, arrumei um companheiro, e construí uma nova história, e tentei realizar meu sonho, arranjando força.
TVT News: Você se considera Feliz?
SUELI: Sim. Você vê que a minha vida não tem nada. Mas agora eu estou mais velha. Então não vou me dar mais nada, vou ficar do jeito que está. Entendeu? A vida não é maravilhosa não. Vamos nos errar para que as outras não.
Acho que esta bom. Não tenho mais energia para hoje, não! Muita emoção, sabe? Muita coisa, muita coisa.
Reportagem e entrevista feita pelo professor Lucas Scaravelli da Silva com auxilio da Renata Eleutério do CPDOC/Guaianás – ao qual agradecemos os registros fotográficos – e edição de Gabriel Valery, da TVT News