Durante um evento realizado nesta quinta-feira (26), na sede da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), no Rio de Janeiro, profissionais brasileiros da organização Médicos Sem Fronteiras (MSF) que atuaram recentemente na Faixa de Gaza e na Cisjordânia denunciaram a existência de uma crise humanitária sem precedentes. Israel promove uma ação de limpeza étnica e mata diariamente civis, mulheres e crianças na Palestina. Entenda na TVT News.
Em relatos emocionados, o médico Paulo Reis, a enfermeira Ruth Barros e a jornalista Damaris Giuliana descreveram um cenário de fome, medo, destruição e abandono que, segundo eles, “excede tudo o que a organização já enfrentou em zonas de conflito”.
“Os seres humanos que permanecem lá estão em uma situação de degradação”, afirmou a enfermeira Ruth Barros, que trabalhou entre março e maio na região norte de Gaza. “Estamos falando de necessidades humanas básicas, de água, alimento e abrigo. Todos esses três pilares estão completamente deteriorados.”
De acordo com MSF, cerca de 2,1 milhões de pessoas estão encurraladas em um território cada vez menor, sem acesso a suprimentos mínimos e sob bombardeios constantes. Entre março e meados de maio, Israel bloqueou completamente a entrada de alimentos e materiais médicos. Embora o bloqueio tenha sido parcialmente flexibilizado no final de maio, a quantidade de ajuda que entra é mínima. “O que entra hoje em Gaza é completamente insuficiente, é uma gota de água em um oceano de necessidades”, disse Ruth.
Bombas a cada hora em Gaza
Veterano em zonas de conflito, o médico Paulo Reis descreveu a gravidade da situação como inédita. “Já trabalhei em zonas de guerra na Síria, Iraque, Iêmen, mas essa quantidade de vítimas e explosões, eu nunca havia visto”, disse. “Em Gaza, a gente não fala que os bombardeios são diários, eles são ‘horários’: toda hora tem alguma bomba explodindo. Os drones e os aviões militares estão lá 24 horas.”
As ordens israelenses de evacuação — que atingem mais de 80% do território — são emitidas com poucas horas, ou até minutos, de antecedência. Quem não obedece, corre o risco de ser atingido. Nem as instalações de saúde são poupadas. “Quando você bombardeia os hospitais, na verdade não quer que as pessoas sejam atendidas”, afirmou Damaris Giuliana, que atuou como coordenadora de comunicação da MSF na Palestina. “Quando você proíbe a entrada de alimentos, você está usando o alimento como arma de guerra. Você está minando todas as possibilidades de vida.”
Ajuda controlada por forças armadas: “uma armadilha mortal”
MSF denuncia que a atual forma de distribuição de alimentos — coordenada por uma fundação criada por Israel e pelos EUA, a Gaza Humanitarian Foundation (GHF) — agrava a crise e transforma a ajuda humanitária em uma armadilha letal. “Os quatro locais de distribuição, todos localizados em áreas sob o controle total das forças israelenses, são do tamanho de campos de futebol cercados por pontos de vigilância, montes de terra e arame farpado”, explicou Aitor Zabalgogeazkoa, coordenador de emergência de MSF em Gaza. “Quando as cercas se abrem, milhares correm para dentro, desesperados, e o caos se instala.”
A cada tentativa de buscar alimentos, palestinos são alvejados por soldados israelenses. “Se chegam cedo, são alvejados. Se chegam tarde, também. Se tentam pular o arame, são baleados”, relatou Zabalgogeazkoa. O resultado é devastador: mais de 500 pessoas foram mortas e quase 4 mil ficaram feridas apenas tentando obter comida.
“Muitas pessoas estavam sendo diretamente alvejadas. Isso não é ajuda. É uma armadilha mortal“, declarou Hani Abu Soud, membro da comunidade atendido por MSF. “Eles iam nos matar um por um. Estávamos com fome, estávamos apenas tentando alimentar nossos filhos. O que mais posso fazer?”
Colapso do sistema de saúde em Gaza
Diante do colapso dos grandes hospitais, as clínicas de campanha assumem a linha de frente dos atendimentos. A clínica de MSF em Al Mawasi, por exemplo, que não possui estrutura para atender casos graves, recebeu mais de 420 pacientes feridos apenas desde o início de junho. “Dez ou mais pacientes com ferimentos violentos chegam dos locais de distribuição todos os dias”, informou MSF.
A escassez de medicamentos, anestésicos e sangue agrava ainda mais a situação. Muitos pacientes morrem antes de conseguir atendimento adequado, e os profissionais médicos se desdobram para salvar vidas em condições extremamente precárias.
Ruth Barros também destacou a dignidade e a resiliência das equipes locais. “Mesmo diante de todas as adversidades, como falta de alimento e abrigo, eu via o quanto eles tinham compromisso com o trabalho. Eles chegavam no horário e estavam sempre limpos e bem vestidos, e eu não entendia como, porque o pó estava por toda parte”, contou.
Apelo por um cessar-fogo
Médicos Sem Fronteiras lançou um apelo urgente para que o cerco humanitário imposto por Israel com apoio dos EUA seja suspenso, e que o sistema de ajuda anterior, coordenado pela ONU, seja restabelecido. “A ajuda não deve ser controlada por uma parte em guerra para promover seus objetivos militares”, afirma a organização.
Para os profissionais que retornaram de Gaza, o mundo não pode continuar olhando para o outro lado. “Todas as ordens de despejo, de deslocamento forçado para tentar expulsar a população do território… é limpeza étnica”, denunciou Damaris Giuliana. “Há padrões de genocídio, de intencionalidade.”