Luciano Andrade Moreira aparece nesta temporada numa das listas mais cobiçadas da ciência: a Nature’s 10, a seleção anual da revista Nature das dez pessoas que mais influenciaram a ciência naquele ano. O motivo não é uma descoberta de laboratório fechada, mas um esforço de escala: criar, produzir e soltar bilhões deAedes aegypti (mosquito da dengue) infectados com a bactéria natural Wolbachia para barrar a transmissão de dengue, zika e chikungunya em cidades brasileiras. Entenda na TVT News.
Cientista e “mosquitário”
Moreira, formado como engenheiro agrônomo e reconhecido também pelo trabalho em entomologia, construiu ao longo de mais de uma década um programa aplicado que transformou conhecimento em intervenção de saúde pública. Na prática, ele liderou a criação de instalações, hoje chamadas pela imprensa de biofábricas ou “mosquitários”, que produzem em escala os chamados wolbitos (Aedes com Wolbachia), coordenando equipes de pesquisa, biossegurança e logística para liberar esses insetos em áreas urbanas. É esse trabalho de translação científica para ação em massa que rendeu a ele o destaque na Nature.
O que é Wolbachia
Wolbachia é uma bactéria intracelular que ocorre naturalmente em muitas espécies de insetos (estima-se que mais de 60% dos insetos a hospedem em algum grau). Quando Wolbachia é introduzida em Aedes aegypti, espécie que originalmente não a tem, duas coisas úteis acontecem para o controle de arboviroses:
Bloqueio do vírus no inseto: a presença da bactéria reduz a capacidade do vírus (dengue, zika, chikungunya) de se replicar no mosquito, diminuindo grandemente a chance de transmissão a humanos.
Manipulação reprodutiva: fenômenos como a incompatibilidade citoplasmática fazem com que cruzamentos entre machos infectados e fêmeas não infectadas resultem em ovos inviáveis, o que facilita a disseminação da Wolbachia na população local quando se soltam grandes números de insetos infectados.
Esses mecanismos tornaram Wolbachia uma ferramenta única — não é um inseticida químico nem uma modificação genética do vírus, mas uma estratégia biológica de substituição populacional que, quando bem implementada, mantém a bactéria presente na população de Aedes ao longo do tempo.
Resultados práticos no Brasil e a fábrica de mosquito
Estudos e experiências-piloto no Brasil (e em outras partes do mundo) mostraram quedas substanciais nos casos de dengue e de outras arboviroses onde houve adoção e cobertura robusta da técnica. Em Niterói, por exemplo, implementações do método se associaram a reduções importantes de incidência, números que serviram de prova de conceito para intervenções maiores. Em 2025 o país inaugurou instalações de grande escala: a chamada Wolbito do Brasil (biofábrica em Curitiba), projetada para produzir dezenas de milhões de ovos/semana, reportagens indicaram capacidade de produção que chega a 100 milhões de ovos por semana na maior unidade, com o objetivo de ampliar a proteção a dezenas de milhões de pessoas. Essa industrialização da intervenção é parte do que a Nature e veículos internacionais apontaram como responsável por transformar uma técnica promissora em política pública de grande impacto.
Por que o reconhecimento importa
O destaque na Nature reconhece tanto mérito científico quanto impacto social: Moreira e sua equipe demonstraram que uma tecnologia biológica pode ser escalada para atingir populações urbanas enormes, com potencial de reduzir hospitalizações e mortes em surtos de dengue, algo especialmente relevante após o surto grave que o Brasil enfrentou em 2023–2024. Ainda assim, especialistas lembram que o Wolbachia não é uma bala de prata: sucesso operacional exige monitoramento contínuo, engajamento comunitário, governança sobre as unidades de produção e articulação com outras medidas (saneamento, vacinação onde aplicável, vigilância entomológica). A tecnologia reduz risco, mas não elimina por completo a necessidade de políticas públicas integradas.
O que vem em seguida
Com o reconhecimento internacional, o desafio agora é consolidar a técnica em políticas duradouras, avaliar resultados em prazos mais longos e em contextos urbanos distintos, e garantir que a expansão seja feita com critérios científicos, transparência e equidade (por exemplo, com priorização de áreas mais vulneráveis). A logística de produzir e distribuir “wolbitos” em escala nacional, contando com centros de produção, equipes de campo e monitoramento epidemiológico, é complexa, mas o modelo brasileiro já serve de referência global e inspirou parcerias internacionais.
