Lula recebe título de Doutor Honoris Causa em Moçambique

Lula recebeu título de Doutor Honoris Causa e disse que fome é resultado de “falta de vergonha na cara de quem governa o mundo”
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O presidente Luiz Inácio Lula da Silva recebeu nesta segunda-feira (24) o título de Doutor Honoris Causa da Universidade Pedagógica de Maputo. Foto: Ricardo Stuckert / PR

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva recebeu nesta segunda-feira (24) o título de Doutor Honoris Causa da Universidade Pedagógica de Maputo, em Moçambique. A instituição afirmou que a honraria reconhece as contribuições do presidente brasileiro nas áreas de ciência política, desenvolvimento econômico e cooperação internacional. Em um discurso carregado de emoção, Lula destacou a centralidade da educação em seu projeto político e criticou a desigualdade global que mantém 700 milhões de pessoas em situação de fome. Confira detalhes na TVT News.

“O mundo produz alimento suficiente para dois tantos de gente que tem no mundo comer. Qual é a explicação de ter 700 milhões no mundo passando fome, senão a falta de vergonha na cara de quem governa o mundo?”, afirmou, provocando aplausos da plateia. Segundo ele, a fome não é consequência da escassez de alimentos, mas de decisões políticas que perpetuam injustiças e desigualdades.

Emoção e simbolismo no retorno a Maputo

Lula iniciou o discurso dizendo-se surpreendido pelo próprio impacto emocional da homenagem. “Eu sempre achei que aos 80 anos […] eu jamais imaginei que poderia ficar emocionado outra vez. […] Eu já tenho muitos títulos de doutor honoris causa, mas nenhum me emocionou como esse”, declarou. Ele afirmou sentir-se “igual” aos moçambicanos presentes na cerimônia e descreveu o país africano como “um reencontro com a história e o afeto”.

O presidente ressaltou que Brasil e Moçambique compartilham laços que vão além da língua, construídos pela história da resistência, da cultura e da busca por liberdade. “Cada vez que volto à África, não me sinto visitante, me sinto voltando para casa”, disse.

Educação como obsessão de Lula

A defesa da educação ocupou grande parte da fala. Lula associou seu compromisso pessoal com o tema à própria experiência de não ter tido acesso ao ensino formal. “A educação pra mim sempre foi uma obsessão […] porque eu não tive a oportunidade de estudar”, declarou. Ao lembrar que proibiu seus ministros de tratarem educação como gasto ao assumir a Presidência em 2003, reforçou: “Educação é investimento, e é o melhor investimento que o governo faz”.

O presidente destacou números acumulados entre seus mandatos e o de Dilma Rousseff: 610 institutos técnicos criados, 190 extensões universitárias e 18 novas universidades federais. Ele mencionou ainda projetos recentes, como a futura universidade indígena e a universidade do esporte, além do programa “Pé de Meia”, que incentiva a permanência de estudantes de baixa renda no ensino médio por meio de transferências condicionadas.

Lula também citou iniciativas de integração acadêmica com países africanos, como o PEC-G, que completa 60 anos, e a criação da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB), em 2010. Para ele, educação e democracia são inseparáveis: “Não há democracia verdadeira onde o povo não tem acesso ao conhecimento”.

Fome, desenvolvimento e responsabilidade política

A cooperação internacional foi outro ponto central do discurso. Lula afirmou que desenvolvimento real “não pode ser imposto de fora” e defendeu um modelo de solidariedade entre países do Sul Global. Ele lembrou que, sob seu governo, o Brasil voltou a sair do Mapa da Fome da ONU em 2025 e lançou, durante a presidência do G20, a Aliança Global Contra a Fome e a Pobreza, da qual Moçambique é membro fundador.

O presidente insistiu que a fome é um problema político, e não técnico: “A fome não é falta de comida: é falta de justiça”. Segundo ele, o combate à pobreza precisa estar “no centro do projeto de desenvolvimento” de qualquer país. Lula reforçou que o povo pobre não pode continuar a ser tratado como “invisível” e defendeu igualdade de oportunidades no acesso à educação e ao emprego.

Nós não queremos tirar nada de ninguém. A gente quer apenas ter o direito de uma empregada doméstica ter sua filha na universidade, da mesma patroa. Que um filho de pedreiro possa ser engenheiro”, afirmou.

Mensagem aos jovens e crítica ao desencanto com a política

Em tom mais pessoal, Lula dirigiu-se aos estudantes presentes para pedir que não desistam do futuro e da política. “A gente não fica velho pela quantidade de anos. A gente fica velho quando não tem uma causa pra lutar”, disse. Ele citou versos do poeta moçambicano José Craveirinha, convocou a juventude a organizar-se e afirmou que o “político decente” está dentro de cada cidadão.

A fala foi encerrada com um apelo: “Quando vocês acharem que ninguém presta, que todo mundo é corrupto, ainda assim, pelo amor de Deus, não desistam da política”.

“Eu vou viver até 120 anos”

Em clima de descontração, Lula voltou a ironizar as emoções que sente como torcedor do Corinthians, “que perde muito”, brincou, e repetiu que pretende viver até os 120 anos para continuar lutando por um “mundo justo”.

O presidente encerrou agradecendo à Universidade Pedagógica de Maputo e reforçando o sentido simbólico que atribui à homenagem: “Muito obrigado pelo título. Que Deus abençoe vocês”.

Confira a íntegra do discurso

Eu sempre achei que aos 80 anos de idade, depois de passar por tantas coisas, eu jamais imaginei que poderia ficar emocionado outra vez.

Eu, na verdade, sou um chorão por natureza.

Eu quero dizer ao corpo docente dessa universidade e a todos que colaboraram para me dar esse prêmio, que eu já tenho muitos títulos de doutor honoris causa, mas nenhum me emocionou como esse, porque eu não sinto aqui nenhuma diferença entre vocês e eu.

Eu sinto que nós somos iguais.

Então eu me sinto muito orgulhoso de estar recebendo essa honraria da Universidade de Maputo. Muito obrigado.

Recebo, com imensa alegria e honra, este título de Doutor Honoris Causa concedido pela Universidade Pedagógica de Maputo.

Agradeço ao Magnífico Reitor, Professor Doutor Jorge Ferrão, ao corpo docente, aos estudantes e ao governo moçambicano.

Voltar a Maputo é, para mim, sempre um reencontro com a história e com o afeto. 

Quando vim aqui pela primeira vez, em 2003, senti de imediato que Brasil e Moçambique estavam unidos.

Não apenas pela língua, mas por algo muito mais profundo: uma fraternidade que nasce da luta, da cultura e do sonho de liberdade.

O Brasil deve ao continente africano muito do que é.

Devemos a nossa cor, a nossa música, a nossa fé, a nossa alegria e o nosso modo de ser.

Foi o povo africano que ajudou a forjar a alma do Brasil.

E é por isso que, cada vez que volto à África, não me sinto visitante, me sinto voltando para casa.

A educação foi uma das primeiras trincheiras da construção de Moçambique.

A Universidade Pedagógica de Maputo é símbolo da esperança que um país ainda jovem depositou no saber para transformar sua trajetória.

Fundada apenas dez anos após a independência e vocacionada para a formação de professores em todas as etapas do ensino, a Universidade Pedagógica de Maputo traduz os sonhos de uma nação.

Aqui, os ensinamentos do mestre brasileiro Paulo Freire encontraram solo fértil.

Ele nos mostrou que a verdadeira educação deve ser libertadora: não apenas ensinar a ler as palavras, mas também a ler o mundo.

Seus métodos e sua filosofia ajudaram a formar gerações de professores, alfabetizadores e líderes comunitários.

Este título que recebo é também uma homenagem a ele, e a todos os educadores moçambicanos e brasileiros que mantêm viva a chama do conhecimento e da liberdade.

No Brasil, que fundou suas primeiras universidades somente no início do século 20, o ensino superior sempre foi pensado e reservado para a elite.

Foi preciso que um metalúrgico sem diploma universitário chegasse ao poder pelo voto popular para mudar essa realidade.

Tenho a honra de ser o presidente que mais criou instituições de ensino técnico e superior no Brasil.

Em meus três mandatos e no mandato da Presidente Dilma Rousseff, terão sido criados 610 institutos técnicos, 190 extensões universitárias e 18 universidades federais novas.

Vamos inaugurar em breve a primeira universidade indígena e a primeira universidade do esporte do Brasil. 

Em 2026, chegaremos a 47 hospitais universitários geridos pelo governo federal e 4 novos hospitais universitários estão em construção.

Para promover a permanência e conclusão escolar de jovens do ensino médio, criamos em 2023 o programa “Pé de Meia”, que é uma expressão brasileira que se refere a guardar uma quantia de dinheiro para o futuro.

O governo federal deposita na conta de cada estudante de baixa renda uma quantia mensal equivalente a 2 mil e trezentos meticais que só pode ser retirada no final do mês se comprovada a matrícula e a frequência. No final do ano ainda oferecemos um bônus equivalente a 11 mil e 800 meticais.  

O Brasil também possui iniciativas que permitem a jovens talentos de Moçambique e de outros países africanos forjarem seu conhecimento lado a lado com jovens brasileiros, tecendo, na sala de aula, o futuro integrado que tanto almejamos.

O Programa de Estudantes-Convênio de Graduação, o PEC-G, que completa 60 anos, oferece oportunidade a estudantes estrangeiros de cursarem o ensino superior em universidades brasileiras.

Em 2010, criamos a Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira – UNILAB – uma verdadeira ponte viva sobre o Atlântico.

A educação e a democracia caminham juntas.

Não há democracia verdadeira onde o povo não tem acesso ao conhecimento.

E não há desenvolvimento quando as riquezas se concentram em poucas mãos.

Educar é fazer da igualdade de oportunidades uma realidade concreta, e não uma promessa distante.

Quando investimos na educação, formamos cidadãos conscientes, trabalhadores qualificados e lideranças éticas.

Meus amigos e minhas amigas,

O título que hoje recebo, na área de Ciência Política, Desenvolvimento e Cooperação Internacional, expressa a essência da fraternidade entre Moçambique e o Brasil.

Ele simboliza a compreensão compartilhada de que o desenvolvimento verdadeiro não pode ser imposto de fora, pois deve nascer da vontade e da inteligência dos povos.

A cooperação internacional só é justa quando é feita com base na solidariedade e no respeito à dignidade e à soberania de cada país.

É nesse modelo que o Brasil acredita.

E é com essa convicção que sempre defendi que o combate à pobreza e à fome deve estar no centro do nosso projeto de desenvolvimento.

A fome não é falta de comida: é falta de justiça.

É o resultado de decisões políticas equivocadas, de desigualdades históricas, de sistemas econômicos que concentram renda e oportunidades.

O Brasil sabe o que significa vencer a fome.

Fizemos do combate à pobreza uma obsessão, com programas como o Fome Zero e o Bolsa Família.

Quando reassumi a presidência em 2023, tomei como prioridade de meu mandato o combate à fome. Naquela ocasião, 33 milhões de brasileiros voltaram a passar fome.

Em apenas dois anos, com políticas públicas exitosas e com a determinação política de colocar o pobre no orçamento, deixamos o Mapa da Fome da ONU uma segunda vez, em 2025.

Durante a presidência do Brasil no G20, lançamos a Aliança Global Contra a Fome e a Pobreza, que tem Moçambique como membro fundador.

Em maio deste ano, convidei os ministros da agricultura da África para visitar o Brasil e conhecer nossa experiência.

A África tem o solo fértil e uma juventude vibrante.

Com cooperação para a produção de alimentos e com fortalecimento da agricultura familiar e da pesquisa científica, terá o futuro mais promissor do planeta.

Mas não será possível cumprir com nenhum ideal de prosperidade em um mundo em que o unilateralismo e as guerras prevalecem.

O Sul Global já não pode mais ser mero espectador de uma ordem internacional que perpetua injustiças históricas.

Senhoras e senhores,

O título que recebo hoje é também uma celebração da amizade entre Brasil e Moçambique.

Uma relação que completou 50 anos em 2025 e que se fortalece pela fé na educação, na democracia e na cooperação entre povos livres.

Eu quero dizer pra vocês, antes de encerrar, que a educação pra mim sempre foi uma obsessão.

E a obsessão que eu tenho pela educação é pelo fato de eu não ter tido a oportunidade de estudar.

Por isso, quando eu tomei posse da Presidência da República do Brasil em 2003, na minha primeira reunião ministerial, eu determinei que era proibido falar em gasto com educação.

Educação é investimento, e é o melhor investimento que o governo faz.

Eu tenho na minha pele, e eu tenho na minha vida, o que é uma pessoa formada e uma pessoa não formada.

Eu sei o quanto vale alguém que não tem uma formação, e sei o quanto vale um trabalhador ir procurar emprego sem profissão.

Eu sei o quanto vale uma menina, uma mulher ir procurar emprego sem profissão.

Eu sei quantos abusos a gente sofre por não ter tido a oportunidade.

É por isso que a educação pra mim é uma obsessão.

Ninguém pode ser preterido de estudar pelo lugar que nasceu, pela religião que professa, ou pela origem financeira da sua família.

Cabe ao Estado garantir a todos a mesma oportunidade.

Não é possível a gente não compreender que um jovem formado ele é muito mais respeitado, vai arrumar um emprego melhor, vai ganhar melhor, vai poder viver melhor e construir a família melhor.

Uma moça bem formada, ela não vai aceitar morar com ninguém a troco de um prato de comida, porque ela tem formação e tem dignidade.

É esse mundo que nós decidamos criar.

Por isso, eu quero dizer para os jovens que estão aqui, não desistam nunca. Não desistam nunca.

A gente não fica velho pela quantidade de anos que a gente tem. A gente fica velho quando a gente não tem uma causa pra lutar, não tem uma razão pra lutar.

E nós temos razão todo santo dia.

Por isso, de coração, eu quero agradecer.

Vocês não sabem o que é emoção. Como eu sou torcedor de um time no Brasil chamado Corinthians, que perde muito, eu não vou morrer de emoção no meu querido coração.

Mas eu queria dizer para a juventude, primeiro eu quero encerrar lembrando do grande poeta José Craveirinha no poema “Futuro Cidadão”:

“Tenho no coração gritos que não são meus somente.

E carrego os sonhos de um mundo que ainda não existe, mas que estamos construindo”.

Por isso, eu quero dizer para vocês: pelo amor de Deus, não desistam, não desanimem.

Qualquer que seja a dificuldade que vocês tenham, sempre é melhor a gente continuar lutando. Lutar sempre, desistir jamais.

Esse tem que ser o nosso lema.

E jovens, meus queridos jovens, quando vocês não estiverem acreditando mais na política, quando vocês acharem que ninguém presta, quando vocês acharem que todo mundo é corrupto, ainda assim, pelo amor de Deus, não desistam.

Porque o político decente está dentro de vocês e não dentro dos outros.

Se organizem e lutem. Porque se não, nós não temos explicação.

O mundo produz alimento suficiente para dois tantos de gente que tem no mundo comer.

E qual é a explicação de 700 milhões de pessoas passando fome? Se não é a falta de vergonha na cara de quem governa o mundo que não garante comida para esse povo.

Não podemos aceitar que o povo pobre seja tratado como se fosse invisível.

Nós não somos invisíveis. Nós queremos ser tratados com respeito.

Nós não queremos tirar nada de ninguém. A gente quer apenas ter o direito de ter a oportunidade de uma empregada doméstica ter sua filha na universidade, na mesma universidade da patroa. Que um filho de pedreiro possa ser engenheiro.

É esse mundo que eu busco. E é por esse mundo magnífico que eu luto.

Por isso eu disse para vocês que eu vou viver até 120 anos. Porque enquanto eu não ver o mundo justo, eu não vou parar de lutar.

E eu acho que não teria lugar para mim no céu. E eu não sei ficar bonzinho quando se trata de cuidar do povo pobre, abandonado e deserdado no planeta.

Gente, muito obrigado.

Que Deus abençoe vocês. E muito obrigado pelo título.

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