O Brasil ganhou mais um imortal. Milton Hatoum, o escritor que deu voz à Manaus de tantas memórias e conflitos, foi eleito nesta quinta-feira (14) para a cadeira 6 da Academia Brasileira de Letras. Ele sucede o jornalista e editor Cícero Sandroni, que nos deixou em junho, e entra com um resultado quase unânime: 33 votos a favor contra apenas 1 para o outro candidato, Antônio Campos. A votação aconteceu no histórico Petit Trianon, no Rio de Janeiro. Entenda na TVT News.
A cadeira que agora recebe Hatoum tem uma história respeitável: seu patrono é Casimiro de Abreu, poeta romântico que ensinou a saudade, e já foi ocupada por nomes como Filinto de Almeida e o próprio Sandroni.
Hatoum nunca escondeu sua preocupação com temas sociais e relevantes do país. Diante da ascensão da extrema direita, ele disse, em reportagem para a Rede Brasil Atual (hoje TVT News), que “achava ue algumas coisas poderiam desandar, mas parece que vivemos em um pesadelo”.
Um amazonense com o mundo na bagagem
Nascido em Manaus, em 19 de agosto de 1952, filho de imigrantes libaneses, Hatoum cresceu cercado de histórias, algumas trazidas do outro lado do oceano, outras nascidas às margens do Rio Negro. Formou-se em Arquitetura na USP, mas preferiu construir narrativas em vez de prédios. Foi professor de literatura francesa na Universidade Federal do Amazonas e ainda lecionou como visitante em universidades estrangeiras.
Seu primeiro romance, Relato de um Certo Oriente (1989), já mostrava a que veio: a fusão de mundos, o diálogo entre culturas, a busca da memória como quem tenta costurar pedaços de si. Com ele, ganhou o Jabuti e abriu caminho para se tornar um dos grandes da literatura brasileira contemporânea.
Já em suas últimas obras, que são partes de uma trilogia em modelo de romance de formação, Hatoum pensou o Brasil em tempos de ditadura, mesclando com histórias de sua juventude.
Nesta linha que suas obras honram o legado dos grandes nomes do gênero como Johann Wolfgang von Goethe, Thomas Mann, sem deixar de lado a poética com referências de Fernando Pessoa e a inteligência na utilização do idioma escrito como é possível saborear nas obras do inigualável Guimarães Rosa.
Histórias que ficam
De lá pra cá, Milton nos presenteou com obras que se tornaram parte do imaginário do país:
- Dois Irmãos (2000), um mergulho nas paixões e rancores de uma família em Manaus, que ganhou vida também na TV, no teatro e até em uma premiada HQ.
- Cinzas do Norte (2005), um romance sobre amizade, arte e desilusão política que lhe rendeu uma coleção de prêmios — Jabuti, Livro do Ano, APCA, Bravo!, Portugal Telecom.
- Órfãos do Eldorado (2008), que ecoa o mito amazônico e virou filme em 2015.
- A cidade ilhada (2009), contos que falam de ausências, deslocamentos e memórias que não largam a gente.
- E a mais recente Trilogia O lugar mais sombrio, com A noite da espera (2017) e Pontos/Ponto(s) de Fuga (2019), voltando o olhar para os anos da ditadura.
E tem mais: um conto seu virou o filme O Rio do Desejo (2023), provando que as palavras de Hatoum continuam inspirando novas leituras e linguagens.
Por que importa
A eleição de Milton Hatoum para a ABL é mais que um título honorífico. É um gesto simbólico que coloca a Amazônia, com sua memória, suas tensões e sua beleza, no coração da literatura oficial brasileira. Hatoum sempre escreveu para lembrar que a história do Brasil também passa pelas margens do Rio Negro, pelas famílias libanesas de Manaus, pelas ruas que mudam junto com a cidade. Agora, como imortal, leva essa voz para o espaço de reflexão e preservação cultural da Academia.
Milton é daqueles autores que escrevem com o ouvido colado no passado e o olhar atento para o presente. E é bonito saber que, na cadeira 6, a poesia romântica de Casimiro de Abreu vai dividir espaço com as narrativas densas, humanas e tão brasileiras de Hatoum.
A Academia Brasileira de Letras ganha um autor que constrói pontes entre Norte e Sul, entre o íntimo e o coletivo. Milton Hatoum traz para dentro da ABL toda uma trajetória feita de empatia, inteligência e luta, não aquela feita com bandeiras, mas com palavras que se recusam a esquecer. Agora, no espaço de Machado de Assis, suas histórias e sua voz humanista terão lugar cativo.