Morre Armand Matellart, teórico da escola latino-americana de comunicação

Intelectual belga que viveu na América Latina, matellart foi um dos principais formuladores da crítica ao imperialismo cultural e referência mundial dos estudos em comunicação e informação
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Junto com Ariel Dorfman", Mattelart publicou "Para ler o Pato Donald”, que se tornou um clássico do pensamento latino-americano. Foto: Carlos Rodríguez/Andes/CC

Morreu em Paris na última sexta-feira (31) o professor Armand Mattelart, aos 93 anos, vítima de uma infecção pulmonar após um ano com diversas hospitalizações. Belga de nascimento, latino-americano por escolha e universal por sua obra, Mattelart foi um intelectual comprometido com as lutas populares e com a crítica à dominação cultural. Sua trajetória entrelaça biografia, política e teoria: um percurso que vai das reformas socialistas no Chile de Salvador Allende à reflexão sobre as utopias e as sociedades da informação no século 21. Leia em TVT News.

A notícia foi confirmada pela Centro Internacional de Estudos Superiores de Comunicação para a América Latina (CIESPAL), que o homenageia como “nosso grande professor inspirador, fortalecedor e formador de seis gerações de pensamento e investigação crítica em ciências de la comunicación”.

Nascido em 1936, em Liège, Mattelart estudou Direito e Ciências Políticas na Bélgica, mas foi na América Latina que construiu sua carreira acadêmica e militante. Em 1962, mudou-se para o Chile, onde se tornou professor de Sociologia da População e da Mídia Impressa na Universidade Católica. Ali iniciou uma trajetória de pesquisa que se tornaria decisiva para a formulação da chamada Escola Latino-Americana de Comunicação, marcada por uma leitura crítica e marxista dos meios de comunicação e pela denúncia das desigualdades nos fluxos internacionais de informação.

Durante o governo da Unidade Popular, liderado por Salvador Allende (1970–1973), Mattelart participou ativamente da construção de uma política nacional de comunicação e informação, voltada para a democratização da mídia e o fortalecimento da cultura popular. Foi chefe da seção de pesquisa da estatal Editora Quimantú e pesquisador do Centro de Estudos da Realidade Nacional (Ceren), ligado à Universidade Católica do Chile.

Após o golpe militar de Augusto Pinochet, em 1973, foi expulso do país. O exílio o levou à França, onde, ao lado da socióloga Michèle Mattelart, sua companheira e colaboradora intelectual, continuou produzindo uma das mais influentes obras da teoria crítica da comunicação. Ainda nos anos 1970, em parceria com Ariel Dorfman, publicou “Para ler o Pato Donald” (1971), uma dissecação ideológica das histórias em quadrinhos da Disney que se tornou um clássico do pensamento latino-americano. O livro revelava como o entretenimento infantil era usado como instrumento de dominação cultural, difundindo a moral do capitalismo e o “american way of life”.

Mattelart seguiu investigando os mecanismos simbólicos do imperialismo cultural — conceito que ajudou a consolidar — e denunciando a subordinação dos países periféricos à lógica informacional e tecnológica do Norte global. Em obras como “Multinationales et systèmes de communication” (1976) e “Mass Media, Idéologies et Mouvement Révolutionnaire” (1974), mostrou como as indústrias culturais se tornaram aparelhos ideológicos de dominação, transformando informação em mercadoria e o público em consumidor passivo.

Com outros pesquisadores latino-americanos, participou da elaboração das teses que inspiraram a proposta da Nova Ordem Mundial da Informação e da Comunicação (NOMIC), discutida na Unesco em 1977. Para ele, a democratização da comunicação passava pela multiplicidade de vozes — “voix multiples, un seul monde” — e pelo direito dos povos a serem produtores, e não apenas receptores, de informação.

Nos anos 1980, já como professor catedrático da Universidade Paris VIII, Mattelart consolidou uma obra que atravessou fronteiras disciplinares, combinando sociologia, história e crítica cultural. Livros como “História das Teorias da Comunicação” (com Michèle Mattelart, 1999) e “História da Sociedade da Informação” (2001) se tornaram referências incontornáveis. Neles, o autor questiona a visão tecnocrática e triunfalista da chamada “sociedade da informação”, desvelando seu caráter ideológico e geopolítico: um discurso que naturaliza as desigualdades sob o manto da neutralidade tecnológica.

Em “História da Utopia Planetária: da cidade profética à sociedade global” (2002), lançado em Porto Alegre durante o Fórum Social Mundial, Mattelart reafirmou sua identificação com a América Latina e com os movimentos sociais que resistem à lógica neoliberal. “Um outro mundo é possível”, escreveu, saudando a emergência de novas formas de utopia que enfrentam o tecnoglobalismo e o “planeta CNN”.

Sua influência se estende também ao campo da Ciência da Informação, especialmente na vertente brasileira da “informação social”, que incorpora categorias marxistas e freirianas para analisar a informação como instrumento tanto de dominação quanto de libertação. Segundo o professor Carlos Alberto Ávila Araújo, da UFMG, Mattelart sempre se opôs “à figura do cientista positivista e administrativo”, propondo uma ciência comprometida com a práxis — “um modo de agir no qual o agente, sua ação e o produto da ação são inseparáveis”.

Ao longo de mais de seis décadas de produção intelectual, Armand Mattelart publicou dezenas de livros traduzidos em várias línguas e formou gerações de pesquisadores que seguem suas trilhas críticas. Seu pensamento, profundamente latino-americano, desafiou fronteiras e permaneceu fiel a uma ética do conhecimento comprometida com a emancipação.

Entre tantos legados, Mattelart deixa seis gerações de investigadores latino-americanos inspiradas por ele. Como assinala a CIESPAL, “seu corpo nos deixa, mas seu pensamento, seus ensinamentos, valores, compromissos, dignidade e solidariedade mundial seguem presentes como uma potência intelectual crucial para os desafios da humanidade no século 21″.

Em tempos de crise das utopias e do avanço da desinformação, sua obra resiste como antídoto contra a neutralidade e o tecnicismo: uma convocação à imaginação crítica e à responsabilidade social da comunicação. Mattelart deixa um legado vivo — o de pensar a informação e a cultura como campos de luta — e uma lição que atravessa toda a sua obra: compreender o mundo para transformá-lo.

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