ONU completa 80 anos enquanto vê genocídios e falta de legitimidade

A ONU enfrenta críticas por sua incapacidade de impedir massacres – como o de Israel contra o povo palestino, entre outros anacronismos
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A ONU, prestes a completar 80 anos, está esvaziada e paralisada”, disse Lula, ao cobrar uma reforma estrutural da organização. Foto: Ricardo Stuckert/PR

A Organização das Nações Unidas (ONU) completa, neste mês de junho, 80 anos desde a assinatura de sua Carta de fundação, em 26 de junho de 1945, em São Francisco, nos Estados Unidos. Criada das cinzas da Segunda Guerra Mundial, com o compromisso de “salvar as gerações seguintes do flagelo da guerra”, a ONU chega a oito décadas profundamente questionada. Entenda na TVT News.

A organização está acuada por crise de legitimidade, de representatividade e, sobretudo, de eficácia diante dos desafios atuais que envolvem guerras, genocídios, recorde de deslocamentos forçados, ascensão da xenofobia, do racismo e da extrema direita que fomenta parte destes fenômenos.

Se por um lado é inegável que a organização teve papel decisivo na prevenção de novos conflitos globais pós Segunda Guerra e na consolidação de mecanismos de ajuda humanitária, por outro, enfrenta críticas crescentes por sua incapacidade de impedir massacres – como o de Israel contra o povo palestino –, de responder a crises internacionais e de reformar suas próprias estruturas anacrônicas e reféns dos interesses das grandes potências.

ONU: necessária e impotente

“O mundo anda em círculos”, resumiu o presidente Luiz Inácio Lula da Silva durante a abertura da 79ª Assembleia Geral da ONU, em setembro passado. Lula criticou a incapacidade da comunidade internacional de alcançar consensos efetivos, como no fracasso em firmar um tratado global sobre pandemias, mesmo após a catástrofe da Covid-19.

“O Pacto para o Futuro, aprovado com extrema dificuldade, reflete o enfraquecimento de nossa capacidade coletiva de negociação. A ONU, prestes a completar 80 anos, está esvaziada e paralisada”, disse Lula, ao cobrar uma reforma estrutural da organização.

O mandatário brasileiro foi além: apontou que a Carta da ONU, firmada por 51 países em 1945, num mundo ainda marcado pelo colonialismo, nunca passou por uma revisão abrangente. Hoje, são 193 Estados-membros, mas o poder real permanece concentrado nas mãos dos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança (EUA, China, Rússia, França e Reino Unido), que detêm poder de veto.

“Estamos no primeiro quarto do século XXI, mas seguimos presos a estruturas do século passado”, reforçou Lula, ao destacar também que sequer uma mulher ocupou o cargo de secretária-geral da ONU em oito décadas.

Crises, guerras e o colapso do multilateralismo

As críticas não partem apenas do Brasil. A própria liderança da ONU reconhece as limitações. O secretário-geral António Guterres, ao lançar a iniciativa “ONU80”, admitiu que a organização enfrenta uma “crise de liquidez sem precedentes” e uma perda generalizada de credibilidade. A crise financeira começou há sete anos, provocada pelo atraso ou não pagamento das contribuições de vários países, inclusive dos Estados Unidos.

“Vivemos tempos incertos, mas, paradoxalmente, nunca a ONU foi tão necessária. Precisamos de reformas profundas para que a organização sirva efetivamente às pessoas”, disse Guterres. Segundo ele, a ONU precisa ser mais ágil, menos burocrática e mais transparente e isso passa por revisar mandatos, programas e até a própria estrutura de poder.

Genocídio em Gaza

Mas, enquanto discursos sobre reformas se acumulam, o planeta assiste, impotente, ao avanço de guerras, genocídios e crises humanitárias. A tragédia palestina é, talvez, o exemplo mais gritante da paralisia da ONU.

Ao comentar o massacre em Gaza e a invasão do sul do Líbano por Israel, Lula disparou: “Sinceramente, é inexplicável que o Conselho da ONU não tenha autoridade moral e política de fazer com que Israel sente à mesa para conversar, ao invés de só saber matar”. O Itamaraty, em nota, também condenou as violações ao direito internacional cometidas por Israel, questionando diretamente a eficácia do Conselho de Segurança.

Não é um caso isolado. Ao longo das últimas décadas, a ONU foi incapaz de evitar genocídios como o de Ruanda, em 1994, o massacre de Srebrenica, em 1995, e, mais recentemente, as atrocidades cometidas no Iêmen, na Síria e a própria guerra entre Rússia e Ucrânia.

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ONU ineficiente para parar o genocídio promovido por Israel em Gaza Foto: IRNA

ONU: teatro de sombras

O maior símbolo da ineficiência da ONU é o Conselho de Segurança. Criado no pós-guerra para garantir a paz global, ele se tornou refém dos vetos dos cinco membros permanentes. Na prática, qualquer resolução que contrarie os interesses de uma dessas potências é imediatamente bloqueada.

“O Conselho perdeu legitimidade. Sua atuação baseada em duplos padrões — quando reage rapidamente a alguns conflitos, mas ignora outros — mina sua autoridade”, reforçou Lula em Nova York.

Analistas do The Guardian e do Le Monde apontam que o Conselho, hoje, mais impede do que promove soluções. Para os críticos, trata-se de um mecanismo ultrapassado, que perpetua as hierarquias geopolíticas da Guerra Fria e ignora a emergência de novas potências e blocos do Sul Global.


“A Assembleia Geral da ONU aumentou o número de resoluções e pedidos que apenas a maior parte de seus membros adotam. Em setembro do ano passado, por exemplo, votou o fim em 12 meses das invasões israelenses em territórios palestinos ocupados à foça (…) Mas essas decisões simbólicas, incapazes de se transformarem em ações reais, fazem da ONU algo como um teatro de sombras”, afirma editorial de setembro de 2024 do periódico francês Le Monde Diplomatique.


Reformas ou irrelevância?

Guterres admite que, sem reformas estruturais, a ONU corre o risco de se tornar irrelevante. A proposta do secretário-geral inclui descentralização, revisão de mandatos e um novo pacto financeiro, que evite a recorrente crise de liquidez que hoje ameaça até operações humanitárias básicas.

Ao mesmo tempo, o desafio é monumental. Alterar a Carta da ONU exige aprovação de dois terços da Assembleia Geral e, mais difícil ainda, a ratificação de todos os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança, exatamente aqueles que têm menos interesse em abrir mão de seus privilégios.

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Rascunho manuscrito original do Preâmbulo da Carta das Nações Unidas, preparado para impressão. Foto: ONU

80 anos da ONU

A data de 26 de junho marca os 80 anos da assinatura da Carta da ONU, que foi redigida e assinada na Conferência das Nações Unidas sobre Organização Internacional (Conferência de São Francisco), que se reuniu de 25 de abril a 26 de junho de 1945. A Carta entrou em vigor em 24 de outubro de 1945, quando foi ratificada pela maioria dos 51 países fundadores, incluindo o Brasil, e os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança (China, França, União Soviética/Federação Russa, Reino Unido e Estados Unidos).

Ao longo de seus 80 anos, a ONU ajudou a salvar milhões de vidas com operações de ajuda humanitária, campanhas de vacinação, combate à fome e mediação de conflitos. Só em 2023, forneceu assistência alimentar a 152 milhões de pessoas e vacinou 133 milhões de crianças contra o sarampo.

Mas isso não basta para esconder o crescente abismo entre o ideal que inspirou sua fundação e a dura realidade de sua atuação no século XXI.

O aniversário de 80 anos da ONU é um alerta. Ou a comunidade internacional encontra uma maneira de reformar a organização, tornando-a mais democrática, representativa e eficaz, ou ela seguirá sendo um espelho das desigualdades, dos impasses e das injustiças perpetuadas por nações poderosas como Estados Unidos e Israel.

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