A ex-presidenta da Argentina Cristina Fernández de Kirchner, chamada pelos apoiadores de CFK, foi condenada a seis anos de prisão, em regime domiciliar. Os movimentos sociais e organizações da esquerda argentina criticam a condenação e estão em defesa da ex-presidente. TVT News explica.
Apoio a Cristina Fernández de Kirchner: defender a democracia além das fronteiras
Na quarta-feira, 18, o peronismo, movimentos sociais, sindicatos e setores da esquerda se mobilizam na Praça de Maio contra a perseguição política à ex-presidenta Cristina Fernández de Kirchner (CFK). Para entender que significa a prisão de Kirchner, TVT News conversa com a jornalista argentina Carla Perelló.
Carla Perelló é jornalista internacional e feminista da Argentina. Licenciada em Jornalismo, cursa mestrado em Relações Internacionais na Universidad del Salvador (USAL) e, há dez anos, faz coberturas sobre os acontecimentos na América Latina.
Para Carla, no caso de Cristina Kirchner, “é necessário pensar a defesa da democracia com perspectiva latino-americana“.
TVT News – Brasil e Argentina estão passando por momentos importantes na defesa da democracia?
Carla Perelló – Sim, há uma semana os Poderes Judiciários dos dois países de maior relevância da América do Sul decidiram sobre o futuro de suas respectivas democracias. Por um lado, no Brasil, o ex-presidente Jair Bolsonaro teve que se apresentar no Supremo Tribunal Federal como réu pela trama golpista do dia 8 de janeiro de 2022, por outro, a Corte Suprema da Argentina decidiu sobre a condenação contra a ex-presidenta Cristina Fernández de Kirchner (CFK). A ideia aqui não é comparar os protagonistas das histórias, mas aos atores que decidem e como o seu posicionamento pode impactar no desenvolvimento da vida de nossas instituições democráticas.
Ao mesmo tempo, ambos fatos se deram no mesmo dia, o que contribuiu para um apagamento das notícias de um lado e do outro da fronteira fazendo com que nos esqueçamos do que acontece com nossos vizinhos, dificultando o processo para sentipensar a integração latino-americana. Passada uma semana, é possível ver que o cenário de polarização das sociedades piora a situação porque, finalmente, os grandes poderes concentrados aproveitam a atomização para seu favor.

TVT News – O que significa a prisão domiciliar de Kirchner?
Carla Perelló – Na Argentina a democracia está sendo fortemente atacada e as instituições ficaram totalmente corrompidas na terça-feira passada, porque Cristina Fernández de Kirchner, a principal liderança da oposição do maior partido político – o Partido Justicialista, o nome oficial do peronismo – está presa e ficará com inelegibilidade política perpétua pela decisão da maior instância do tribunal judiciário do país e não poderá ser candidata nas eleições legislativas desse ano. Kirchner havia anunciado essa candidatura há menos de um mês.
Além disso, o Tribunal concedeu a Fernández de Kirchner a prisão domiciliar por ela ter mais de 70 anos, mas deverá responder a duas fortes restrições: deverá usar um dispositivo eletrônico e se abster de “se envolver em comportamentos que possam perturbar a tranquilidade do bairro”.
A primeira decisão é estranha. Ela já conta com custodia policial permanente por ser ex-presidenta e só 16% dos genocidas julgados no pais usam tornozeleira. A segunda decisão mais parece uma ação para proibir-lhe sair à varanda da sua casa para cumprimentar aos apoiadores que começaram uma vigília há uma semana, o que se torna também uma mensagem contra a mobilização da militância.
TVT News – Na sua análise, quais foram os problemas do julgamento de Cristina Kirchner?
Carla Perelló – A sentença contra Fernandez de Kirchner foi confirmada depois de um longo processo judicial – que começou no ano 2008 – por “administração fraudulenta com prejuízo ao Estado”. Ela foi acusada de favorecer projetos rodoviários multimilionários a um suposto sócio durante seus dois mandatos presidenciais, entre 2007 e 2015, e o fato se desdobrou em sua condenação.
Em um comparativo do processo Lava Jato que condenou o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o processo de Kirchner, conhecido como “Causa Vialidad” também acontece de forma totalmente viciada do ponto de vista legal, com magistrados acusados de terem planejado previamente o final da vida política da CFK, junto com parte da elite, da mídia hegemônica, econômica e política.

Apesar da Justiça reconhecer não ter conseguido provas da parceria da a ex-presidenta com o suposto sócio, ainda assim a Corte Suprema – com apenas três dos cinco integrantes que deveria ter-, de um dia para outro, decidiu não revisar a sentença do Tribunal anterior, que condenava Fernández de Kirchner, e nem conferir o devido processo legal e rejeitou o recurso de anulação da condenação.
TVT News – A condenação de Cristina Kirchner se enquadra na violência política contra as mulheres?
Carla Perelló – Sim, para além das vias legais, é uma condenação com viés de gênero. Uma condenação imputada a quem foi duas vezes presidenta, extremamente assediada pela mídia hegemónica por ser mulher, e que até sofreu tentativa de femi-magnicidio (esse é o nome dado pelo Comité da Organização dos Estados Americanos (OEA) por ser uma tentativa de feminicídio político) em 2022.
O contexto desse resultado de forte viés de gênero num ano eleitoral é extremamente marcante: a extrema direita chegou no Executivo pela primeira vez na história em 2023 com uma forte narrativa violenta, misógina e anti LGBT+.
A partir desse momento, com Javier Milei na presidência, a violência política se intensificou em geral contra diferentes setores da sociedade: com atos de perseguição contra os movimentos sociais, contra os partidos políticos da oposição (representada pelo peronismo, o kirchnerismo e a esquerda), com fortes repressões aos protestos nas ruas nos quais os jornalistas também são atingidos.
Um exemplo é o caso do fotógrafo Pablo Grillo que, que foi baleado na cabeça e quase morreu.
Tudo isso, acompanhado com um discurso contra a justiça social materializado em políticas públicas de um governo cujo objetivo é ‘destruir o Estado de dentro para fora’, segundo palavras do Milei.
TVT News – Como são as reações à prisão de Kirchner na Argentina?
Carla Perelló – Na semana passada, a CFK respondeu às comemorações da direita e da extrema direita por sua prisão na sede do Partido Justicalista: ‘Podem me prender, mas as pessoas continuarão recebendo salários miseráveis ou perdendo o emprego, as aposentadorias vão continuar insuficientes e não vão chegar ao fim do mês, e os remédios estarão cada vez mais caros’.
A partir desse dia extremamente tenso, a ex-presidenta recebeu a solidariedade não só da militância, de sindicatos e diversos setores do peronismo, mas também de lideranças partidárias da esquerda que são historicamente contra o peronismo, que denunciaram o ‘avanço antidemocrático, que tira do povo o direito de eleger aos seus representantes’ e chamaram todos a se mobilizar, o que aconteceu no mesmo momento em várias cidades de todo o país.
Porque, ao final, esse ato judiciário consolida o autoritarismo e a perseguição política do governo do Milei, quem admira o Donald Trump, alinhou a política exterior do país com os Estados Unidos e Israel e tem como referência o Viktor Orban, da Hungria, e o Nayib Bukele, de El Salvador, presidentes que se converteram em autocratas em países sem poderes independentes, que não estão conseguindo colocar um freio ao desmantelamento sistemático do Estado de Direito.
TVT News – Por que você diz que a situação de Cristina Fernández de Kirchner é a defesa da democracia na perspectiva latino-americana?
Carla Perelló – Porque tudo isso acontece num país que é referência na América Latina e no mundo pela condenação dos genocidas da última ditadura militar (1976-1983). Ditadura responsável pelo desaparecimento de 30 mil pessoas. Num país onde protestar nas ruas é direito constitucional, igual como a liberdade de expressão e de imprensa, mas que tem um presidente que não gosta nada disso.

Acontece também na região latino-americana, que infelizmente coleciona golpes de Estado: Honduras, em 2009; Paraguai em 2012 e Brasil em 2016, e até na Bolívia em 2021, além das guerras jurídicas contra as lideranças progressistas. Acontece num mundo em que as extremas direitas autoritárias querem se consolidar, com figuras como o Bukele em El Salvador e o Daniel Noboa, no Equador.
Os judiciários de Brasil e Argentina se movimentaram, e o que nos fica é a importância da separação dos poderes, a necessidade constante de um judiciário isento, que não permite se corromper a partir de viés político ou econômico.
Apenas a fomentação dos poderes de forma independente garante a perpetuação da democracia. Entender a lógica dessas violações a partir da questão de gênero nos traz luz para também compreender a importância da defesa das mulheres e das pessoas LGBT+ no espaço político, com tantas violações presentes.
Então, a chave é olhar para saber, de fato, o que acontece do outro lado da fronteira, servindo para pensar os próprios processos políticos, construir ferramentas para nos defender e, também, consolidar a democracia a nível regional, afinal, as decisões de países vizinhos impactam diretamente as decisões locais e a América Latina provou isso diversas vezes ao longo de sua história.
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