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Que xouzinho é esse? Sobre a arte para público infantil

Atriz, pesquisadora e escritora analisa as dificuldades de produzir, montar e apresentar arte para o público infantil
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Espetáculo infantil da Cia. Ruído Rosa. Foto: Acervo Anna Carolina Longano

Apresentar algo para o público infantil é sempre… interessante. Aprendi muitas coisas nesses quase 20 anos em que subo no palco, ou entro em uma biblioteca, ou apareço no meio de uma praça, ou entro em uma sala multiuso, ou surjo no meio de uma quadra, ou broto no pátio de uma escola…enfim, aprendi muito nesse tempão em que venho criando, produzindo e apresentando arte para o público infantil. E, de tudo isso que vi, ouvi, vivi e senti, gostaria de aproveitar o mês das Crianças para falar um pouco sobre arte para o público infantil.

Há poucos dias, viralizou o vídeo da menina indignada questionando que xou era aquele, no qual deixaram o moço entrar, enquanto as crianças ficavam de fora. Seria engraçado, se não tivesse certa semelhança com a própria história do teatro infantil por aqui.

Surgido no Brasil primeiro com a função de catequizar as crianças, o teatro infantil conquistou seu lugar nos palcos apenas depois que deixaram os adultos entrarem. Explico: o teatro infantil entrou nos teatros como uma forma de reaproveitar cenários, figurinos e o palco livre, no contraturno dos espetáculos para público adulto.

Que seu surgimento tenha sido assim, mais modesto, acontece… O problema é que, até hoje, parece que tem muita gente acreditando que a arte para o público infantil é aquela que reaproveita as coisas, que ocupa os espaços vazios. É a arte “inha/o”. O TEATRinho… A PECinha… A HISTÓRinha… poderia ser uma forma fofa, carinhosa de nomear. Mas, geralmente, representa apenas desprezo.

Lembro-me de uma vez em que chegamos para apresentar. Não era em um teatro, mas no meio de uma livraria. Literalmente, não havia um espaço preparado para a apresentação, o público não estava avisado, nada disso. Simplesmente deveríamos brotar no meio dos livros e começar a fazer uma apresentação. Como se para apresentarmos alguma coisa não fosse necessária uma preparação nossa e do público.
Tudo bem, o público não precisa chegar às 3 da manhã, como a indignada menina do vídeo. Mas por que será que as pessoas acreditam que o público infantil quer assistir a alguma coisa a qualquer hora do seu dia?

Tentarei ser generosa mais uma vez. Compreendo que ninguém, além dos artistas, precisam conhecer bem e entender as necessidades que temos antes de uma apresentação. Chegando na livraria, após a estranha recepção, resolvemos esclarecer que precisávamos de um lugar para nos trocarmos, deixarmos nossas coisas. A pessoa, certa de que estava arrasando em sua fala, disse: vocês vão vestir suas fantasias?
Bem que eu gostaria. Eu vestiria uma fantasia da mulher invisível e sumiria dali, naquele momento. Colocaria a capa do Doutor Estranho, abriria um portal e sairia em uma praia paradisíaca… mas, não, eu apenas queria colocar meu figurino e deixar minha mochila, carteira, celular em um lugar seguro. Não é má vontade, mas é que atrapalha um pouco se apresentar no meio de pilhas de livros, enquanto interage com o público e presta atenção se ninguém está mexendo na sua mochila jogada no canto da loja.

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Trabalhadores do teatro infatil enfrentam dificuldades para encenar os espetáculos

Mas, o show(zinho?) tem que continuar! Artista tem essa mania estranha de achar que precisa engolir muita coisa, desde que consiga apresentar sua obra para o público. Então a gente continua. Explica que figurino é uma roupa pensada para determinada apresentação, criada levando em conta a proposta artística e estética do espetáculo e a necessidade corporal das pessoas que atuam. E, fantasia é aquela roupa que alguém veste para vender algodão doce na praia. Nada contra. Mas não é a mesma coisa. 
A gente vai e se troca. Geralmente num espaço improvisado. No banheiro que todo mundo usa, no almoxarifado, no depósito. Nos equilibramos para vestir a calça sem que ela encoste no chão respingado de xixi e sabe-se lá o que de um banheiro muito usado. Batemos o braço em uma estante enquanto colocamos a blusa e nos apoiamos em uma pilha de livros enquanto, de pé, vestimos o sapato da apresentação e corremos para o espaço apertado entre uma TV e uma estante, que talvez dê para nos apresentarmos.

E apresentamos. Ali, no lugar que abrimos entre pufes, cadeiras e livros, desligamos a TV sem pedir para ninguém. Criamos, na marra, um momento, um espaço, para que nossas décadas de estudos, anos de experiência e meses de ensaio apareçam através de uma apresentação. Enquanto o público tenta entender porque dois malucos vestidos de forma estranha estão gritando no meio da livraria, uma história, um novo mundo, uma obra artística vai sendo construída.

No meio do caos, uma, duas, três carinhas felizes vão parando, outras mais vão se aproximando, olhando pra gente, se colocando no chão, com as pernas cruzadas, as costas curvadas e o queixo apoiado na mãozinha. O olho atento, o sorriso no rosto ou a boca aberta, comprando cada pedacinho do que vamos contando. E aí vai ficando evidente a diferença entre uma apresentaçãozinha e uma criação artística. Entre a leiturinha bem-intencionada da tia da biblioteca e a contação de histórias feita por profissionais. Entre o tio engraçadinho tentando alegrar as crianças na festinha e um número de palhaços. Não esperamos que o público madrugue para nos ver.

Mas exigir o mínimo de dignidade e respeito, como fez a menina do vídeo, não tem a menor graça.
Antes da gente terminar, só queria que você lembrasse de tudo o que você viu durante a sua infância e que até hoje você lembra com carinho. Você não concorda que as pessoas que produziram aquele desenho sensacional que você assiste até hoje, aquela música que você canta no final das festas quando a animação e o teor alcoólico aumentam, aquela peça de teatro que você assistiu de olhos vidrados e lembra de cenas até hoje, merecem muito mais do que as sobras?

Por Anna Carolina Longano

Sobre a autora

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Anna Carolina Longano é bacharela em Artes Cênicas pela USP, Mestra em Ciências pela USP e em dezembro se torna Doutora pela USP pesquisando representações de mulheres, feminismos e escrita feminista. Desde 2006, com a Cia. Ruído Rosa, cria, produz e apresenta arte para o público infantil. 

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