Por Paulo Niccoli Ramirez
Com a morte de Silvio Santos no último dia 17 de agosto, diferentes meios de comunicação, sobretudo os televisivos e mesmo concorrentes, destinaram sua programação para homenagens ao falecido dono do SBT. Não há dúvidas de que o apresentador foi um dos maiores comunicadores do país, um verdadeiro marco simbólico de programas que buscavam reunir famílias em frente aos televisores; soube como poucos manter a atenção com seu entretenimento focado nos programas de auditório dominicais, promovendo verdadeira escola de aprendizagem para diferentes apresentadores em sua própria rede de TV e de outras emissoras. Silvio Santos foi homenageado e ovacionado como um “rei” e mestre entre os apresentadores.
Na semana que se seguiu após sua morte, notícias ou comentários de jornalistas procuraram mostrar outras faces de Silvio Santos, sobretudo ao distinguir seu lado carismático como apresentador, visível nas telas, e o outro lado, o Silvio Santos empresário. O dono do SBT atrás das telas foi apresentado como que com olhar cirúrgico, capaz de identificar talentos artísticos precoces e fazer com que programas de TV engrenassem, ainda que com a troca inesperada de horários ou mesmo de seus apresentadores. O empresário Silvio possuía várias empresas, algumas falidas como o banco Panamericano, outras com sucesso longevo, caso do Baú da Felicidade e o título de capitalização chamado Tele Sena. A impressão é a de que diferentes matérias fizeram questão de promover a distinção entre apresentador e empresário.
Outras notícias procuraram mostrar aspectos negativos do Silvio Santos empresário. Um dos temas levantados é expresso pela trágica relação de Silvio com o Teatro Oficina, do falecido dramaturgo Zé Celso (cujo projeto arquitetônico pertence a Lina Bo Bardi). Os ocorridos expressam bem a diferença entre o pragmatismo utilitarista do empresário em relação ao carisma do apresentador. Zé Celso durante anos travou disputas com Silvio Santos a respeito do terreno baldio vizinho ao teatro localizado na região central de São Paulo. A intenção de Silvio Santos era construir um shopping, que caso fosse adiante teria ocultado a arquitetura do próprio teatro, tornando-o um simples coadjuvante em seu próprio palco. Tratava-se de um conflito explícito entre a cultura popular do teatro e a cultura de massas do shopping, templo do capitalismo.
Vale dizer que por cultura popular entende-se a construção reflexiva que produz senso-crítico, resgate da memória histórica, sensibilização perante os dilemas e contradições da sociedade. A cultura popular representa a permanente constituição estética de conhecimento social, está longe de existir em função das lógicas mercadológicas burguesas em torno do lucro, descartabilidade e carência de reflexão. Sob estes aspectos reside a diferença entre cultura popular e cultura de massas. Esta última transforma a arte em mercadoria, portanto, torna-a sujeita aos critérios de venda, audiência e massificação. Pouco importa a qualidade artística-estética, o que importa é quantidade financeira. Voltaremos ao tema mais adiante.
História do império midiático
Outras notícias sobre a morte de Silvio Santos, de forma muito tímida, resgatavam o fato de que a antiga TVS foi concedida ao empresário pela ditadura militar (governo Ernesto Geisel) em 1975 no Rio de Janeiro, depois sendo chamada de SBT com amplitude nacional em 1981 com a concessão do ditador João Figueiredo. As concessões televisivas foram resultado da postura passiva e cordial de Silvio Santos diante do autoritarismo do regime vigente. Silvio Santos, empresário e apresentador, estava longe de ser uma ameaça ao regime, pois sua programação apresentava desde calouros cantores sendo julgados por não cantores, como fofoqueiros e comediantes, até competições tolas envolvendo artistas convidados ou gincanas com sua plateia. Durante a programação havia a exibição de um breve vídeo denominado “Semana do Presidente”, sendo a sua intenção a de demonstrar com otimismo ufanista as supostas benfeitorias da ditadura, quando na verdade contribuía para mascarar as violências do regime, as crises econômicas e criar a falsa imagem de bons moços aos militares.
Antes disso, em 1962, Silvio Santos inicia seu vertiginoso enriquecimento quando adquiriu o Baú da Felicidade. Com a publicidade do Baú em seus programas e depois em sua emissora, passou a consolidar a venda de carnês pagos mês a mês que poderiam ser trocados por brindes com o acúmulo de pontos ou até mesmo sorteios que permitiam aos clientes a aquisição de prêmios mais simples até mesmo o sonho da casa própria. Num cenário de desigualdade social e baixos salários, o Baú da Felicidade permitia que se pagasse pouco a pouco por um eletrodoméstico ou outro, ainda que leva-los para casa ou a sua aquisição real, após a troca dos pontos, pudesse levar algum tempo, fora problemas das defasagens tecnológicas.
O império televisivo de Silvio Santos alcançou seu auge a partir do final do século passado, década de 1990, quando amplia seus estúdios com instalações mais modernas em terreno na cidade Osasco junto à estrada que recebe o nome de um bandeirante genocida conhecido como Anhanguera. Embora tenha muito se falado das diferenças entre Silvio Santos empresário e apresentador desde sua morte em diferentes meios de comunicação, creio ser importante ressaltar de que modo ambos coincidem para além da passividade já destacada diante do regime militar.
Estamos nos referindo ao conteúdo de seus programas. Foram vistos na última semana inumeráveis elogios aos programas de Silvio Santos, destacando a sua capacidade de reunir as famílias em frente a televisão, permitindo-as sorrir e promover alegria. No entanto, lembro-me quando criança, por volta de oito ou nove anos, a primeira vez que vi um programa chamado “Topa tudo por dinheiro”. Confesso que a primeira impressão, ainda que infantil, foi a pior possível, sendo reforçada ao longo dos anos, pois fiquei em choque ao ver o apresentador e empresário jogando dinheiro em formato de avião para que a plateia os capturasse, algumas vezes rastejando no chão e empurrando outras pessoas. O início da década de 1990, quando vi pela primeira vez o referido programa, foi marcada por elevados índices inflacionários, dificuldades de pagar as contas, e lembro bem a dificuldade que meus país tinham em pagar o aluguel ou mesmo fazer compras de alimentos com o salário. Silvio Santos então entoava a frase “quem quer dinheiro?” e sua plateia delirava, atirando-se ao chão e empurrando uns aos outros para caçar os aviões. A sensação que tive e tenho até hoje vendo tais imagens no Youtube é de que Silvio Santos humilha sua plateia lançando esmolas ao vento, típica postura burguesa diante da pobreza.
Cultura Popular e Cultura de Massa
Esta situação demonstra a íntima relação do empresário com o apresentador. A estratégia foi utilizar um programa cheio de pegadinhas, muitas sem dúvida engraçadas, aviões lançados à plateia, artistas convidados para gincanas. Antes, durante e após a ditadura, Silvio Santos foi um importante distrator dos reais problemas da sociedade brasileira. Em contextos de violência, miséria, desigualdade e de elites oligárquicas no poder e comandando a economia, Silvio Santos foi o bufão necessário para desviar o foco da sociedade, promovendo programação rasa, de fácil entendimento por não exigir nada complexo às mentes e capaz de fazer os telespectadores sorrirem apesar de todos os problemas que o país enfrentava. Enriqueceu dessa maneira!
Não por acaso fazia questão de estar junto à plateia em seus programas. Em um livro muito interessante intitulado A Rebelião das Massas (1929) do filósofo espanhol Ortega y Gasset, descreve-se a massa como sendo homogênea, passiva, incapaz de possuir autonomia intelectual e sempre sujeita a obedecer um líder. Os líderes carismáticos de regimes autoritários, das religiões neopentecostais, assim como os apresentadores de programas de auditório na Tv exigem as massas nas plateias e nas telas para dar a sensação de guiá-los como “ovelhas em pasto verde” (diria Nietzsche). A plateia fornece a sensação de conforto, adestramento dos corpos e mentes, além da conformidade que sujeita-a à obediência extrema e cega. O indivíduo inserido nas massas cria a sensação de identificação e não diferenciação com outros, deixando-se levar pelo fluxo das emoções, ainda que rindo quando são postos em condições intelectualmente degradantes.
Um último aspecto que une o empresário ao apresentador que pode ser destacado ocorreu durante a presidência de Jair Bolsonaro. É conhecido o fato de que o marido de uma das suas filhas, Fábio Faria, foi ministro das Comunicações no ano de 2020 até o último ano de governo do ex-presidente. Simbolicamente representa a combinação da cultura de massas promovida pelo SBT de Silvio Santos com o autoritarismo patético de Jair Bolsonaro, praticamente sinônimos. Silvio e Jair complementaram-se e alimentaram o processo de bestialização de parte da opinião pública, massificando-a, cujo auge se deu no primeiro ano de mandato de Bolsonaro, quando o SBT resgatou e reproduziu em sua programação em 2019 um estúpido slogan utilizado durante o regime militar na década de 1970, “Brasil, ame-o ou deixe-o”, em alusão aos críticos da ditadura “convidados” a se retirar do país, quando não presos, torturados e mortos.
Silvio Santos deixou este mundo fornecendo um legado contraditório. Divertido, excelente comunicador, porém um comunicador com conteúdo moralista e vago, que fez dinheiro às custas da miséria econômica do povo e responsável por nada fazer em relação à valorização da cultura popular porque a tornou mercadoria, ou seja, cultura de massas descartável.
Sobre o autor
Paulo Niccoli Ramirez tem graduação, mestrado (sociologia) e doutorado (antropologia) em Ciências Sociais pela PUC-SP, além de graduação em Filosofia pela USP. Leciona na Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP) desde 2013 e na Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM) desde 2016. Promove cursos na Casa do Saber, fornece entrevistas e escreve artigos para diversos meios de comunicação dentro e fora do Brasil, com o Bom para Todos, da TVT. É autor dos livros Sérgio Buarque de Holanda e a dialética da cordialidade (Educ, 2011), Ética, cidadania e sustentabilidade (SENAC, 2021), O Golpe de 2019 na Bolívia (Coragem, 2023), entre outros ensaios e artigos acadêmicos em livros e revistas direcionados às Ciências Humanas.