Obras afro-brasileiras voltam ao Brasil após 30 anos em museus internacionais 

Cerca de 750 obras de arte de artistas negros serão devolvidas à Bahia
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Cerimônia de Candomblé, de Didito. Foto: Reprodução

O Brasil receberá a devolução de 750 obras de arte de artistas afro-brasileiros que passaram os últimos 30 anos sendo exibidas em museus nos Estados Unidos e no Canadá. As pinturas, esculturas e objetos religiosos que constituem a coleção, são de artistas nativos da Bahia, Pernambuco e Ceará e serão recebidos pelo Museu Nacional da Cultura Afro-Brasileira da Bahia (Muncab)

A devolução das obras

É relevante ressaltar e exaltar o retorno das peças produzidas predominantemente por artistas brasileiros negros, as quais retornarão de museus localizados nos Estados Unidos e no Canadá para o Brasil. 

O conjunto é composto por aproximadamente 750 peças, coletadas ao longo de 30 anos pela historiadora Marion Jackson e pela artista Barbara Cervenka. Atualmente octogenárias, elas reuniram essas obras principalmente na região da Bahia, em Cachoeira, no Recôncavo Baiano, além de partes do Ceará e de Pernambuco, transportando-as ao longo desses anos para os Estados Unidos, onde constituíram um acervo e criaram uma instituição para proporcionar visibilidade aos artistas que não dispunham de recursos para exposições ou não possuíam contatos necessários. 

Neste momento de suas vidas, já octogenárias, concluíram ser necessário destinar as peças a um local mais apropriado, considerando que estas já cumpriram seu propósito de divulgar a arte negra brasileira nos Estados Unidos e no Canadá. Por esse motivo, realizaram um acordo de devolução, no qual as obras serão incorporadas ao acervo do Museu Nacional Afro-Brasileiro, localizado em Salvador. Importante salientar que estas peças não foram obtidas por meio de roubo, prática comum em museus europeus e mesmo em alguns museus estadunidenses. As obras foram efetivamente adquiridas, fato que não invalida este processo de retorno como parte de uma tendência internacional de devolução de obras aos seus territórios originais, independentemente de terem sido obtidas por compra ou por apropriação indevida. Este movimento relaciona-se com o recente acontecimento no Rio de Janeiro, quando recebemos o manto tupinambá, que permaneceu por mais de 50 anos em um museu na Dinamarca e foi devolvido ao Museu Nacional. 

Este conjunto específico apresenta particular relevância por reunir obras de artistas frequentemente desconhecidos pelo público brasileiro. Não apenas o público internacional não teve acesso a essas obras, mas também os cidadãos brasileiros, desconhecem grande parte dos artistas que compõem este extenso acervo de 750 peças. 

Esta possibilidade de retorno assegura nosso acesso a essa memória, história e nomes, principalmente a essas obras que expressam não somente a estética da população negra produtora na Bahia e no Recôncavo Baiano, utilizando os mais diversos materiais, mas também uma estética que dialoga com a filosofia e as influências afro-brasileiras presentes naquela região. A Bahia é o estado que apresenta, em seu censo demográfico, predominância da população negra e significativa influência do território iorubá, especialmente da Nigéria. Esta estética iorubá reflete-se nestas obras. O acesso a estas peças representa, portanto, o acesso a este conhecimento, filosofia e arcabouço desenvolvido pelos artistas negros que se nutriram das fontes iorubanas. 

No contexto dessa influência iorubá na arte, especialmente no Recôncavo da Bahia, destaca-se nesta coleção uma peça particularmente representativa: um Oxalá confeccionado pelo artista Louco Filho, inteiramente esculpido em peça única de madeira, com aproximadamente dois metros de altura. As colecionadoras relatam que o transporte desta peça de Cachoeira para os Estados Unidos demandou meticuloso trabalho logístico. A possibilidade de retorno desta obra ao território de Salvador, tornando-a acessível aos habitantes locais e visitantes, representa um marco. A oportunidade de contemplar a obra no território onde o próprio artista nasceu, desenvolveu-se e produziu reveste-se de grande significado, constituindo também um movimento de reparação em relação à memória do tráfico, à memória ancestral dos povos escravizados e de respeito aos artistas que tanto produziram a partir de sua relação com o continente africano e com a América do Sul. 

A discussão referente à repatriação de peças apresenta-se como tema sensível globalmente. Observaram-se iniciativas como a do presidente francês, que sinalizou a devolução de peças saqueadas do Benin, processo este ainda não concluído; da Alemanha, que recentemente devolveu uma peça à Nigéria; e dos Estados Unidos, que restituíram uma coleção ao rei Ashanti de Gana. Contudo, este movimento de reparação ainda se mostra incipiente, principalmente porque instituições museológicas na Europa e algumas nos Estados Unidos argumentam que a África ainda não dispõe de espaço apropriado para receber estas obras de arte – referindo-se a peças que foram indevidamente apropriadas por meio de saques. Questiona-se, entretanto: onde estas peças estavam antes de serem levadas para a Europa? Encontravam-se neste território. Surge, assim, uma discussão mais ampla sobre o que legitima os museus europeus como espaços qualificados para a manutenção dessas obras. 

Quanto ao Brasil e ao retorno específico destas 750 peças do acervo afro-brasileiro proveniente dos Estados Unidos, é importante ressaltar que sua conexão com nossa história enquanto nação e com a aplicação da Lei 10.639/2003, possibilitando que estas peças constituam ferramentas pedagógicas para os professores e pesquisadores.

carollina

Com texto de Carolina Morais, Mestre em História da África, Mestranda em Comércio Exterior, co-fundadora da The African Pride, palestrante/Mestre de cerimônia e consultora para equidade racial.


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