Violência política em rede: quando ser mulher negra se torna um ato de resistência

Confira o que diz a pesquisa "A instrumentalização da internet em casos de violência política de gênero e raça no Brasil"
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ataques não se limitam a uma região. O Sudeste concentra 43% dos casos, com destaque para São Paulo (13) e Rio de Janeiro (9). O Norte representa 19% dos casos, mostrando que a violência é nacional Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil

A Câmara dos Deputados recebe hoje (27) o lançamento de um relatório que escancara uma das expressões mais perversas da violência no Brasil contemporâneo: a violência política de gênero e raça (VPGR) no ambiente digital. Entenda na TVT News.

A pesquisa, intitulada A instrumentalização da internet em casos de violência política de gênero e raça no Brasil, é fruto da colaboração entre o Instituto Marielle Franco, a Justiça Global e a Terra de Direitos, e oferece um diagnóstico sobre como o ambiente digital se transformou em ferramenta de silenciamento e terror contra mulheres negras, LGBTQIA+, periféricas e defensoras de direitos humanos.

Os dados, baseados na análise de 77 casos registrados entre junho de 2021 e julho de 2025, revelam o que os autores chamam de “regime de violência sistemático”, caracterizado por ataques constantes, coordenados e com motivação ideológica. A pesquisa demonstra que esses episódios não são aleatórios, mas intencionalmente direcionados a mulheres que ousam disputar o espaço político com corpos dissidentes e pautas progressistas.


A dor transformada em denúncia

Na introdução do relatório, Luyara Franco, diretora executiva do Instituto Marielle Franco e filha da vereadora brutalmente assassinada em 2018, escreve com sensibilidade:

“Carrego comigo uma dor que tem se convertido em força: a ausência física da minha mãe […]. Mas carrego também a potência do seu legado, que permanece vivo em cada mulher negra, periférica e LGBTQIAPN+ que existe, resiste e reivindica o direito de decidir.”

Segundo Luyara, o documento é mais que um estudo:

“É uma ferramenta de denúncia, resistência e transformação social.”

Ela destaca que as redes sociais, embora criadas com a promessa de ampliar a participação democrática, se tornaram “arenas de linchamento, perseguição e silenciamento”, especialmente contra mulheres que desafiam estruturas racistas, patriarcais e heteronormativas.


O perfil das vítimas: raça, gênero, território e partido

Pesquisa assinada pelo cientista social Aron Giovanni de Oliveira, detalha com precisão o perfil das vítimas: 69% se autodeclaram pretas, 18% pardas, 10% brancas e 3% não identificadas. Ainda que 90% sejam mulheres cisgêneras, há uma presença significativa de mulheres trans e travestis (10%). Em relação à sexualidade, 61% se identificam como heterossexuais, 25% como bissexuais e 11% como lésbicas, evidenciando o papel da LGBTIfobia nesse ciclo de violência.

Os ataques não se limitam a uma região. O Sudeste concentra 43% dos casos, com destaque para São Paulo (13) e Rio de Janeiro (9). O Norte representa 19% dos casos, mostrando que a violência é nacional.

Um dado particularmente alarmante é a concentração da violência contra parlamentares em exercício (71%), com destaque para vereadoras (48%), deputadas estaduais (19%) e federais (16%). Além disso, a maioria das vítimas está filiada a partidos de esquerda ou centro-esquerda: PT (43%) e PSOL (30%) somam 73% dos casos, revelando um nítido viés ideológico.

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Pesquisa do Instituto Marielle Franco faz panorama de como funciona a violência digital no Brasil. Foto: Mídia NINJA via Wikimedia Commons


Terror como método: ameaças e estratégias de controle

A tipologia da violência é ampla, mas há uma clara predominância das ameaças e intimidações, presentes em 71% dos casos. Dessas, 64% envolvem ameaças de morte e 31% de estupro. O objetivo é claro: instaurar o medo como forma de controle. A ameaça de estupro, por exemplo, reafirma o corpo da mulher como território de dominação e violação, com marcadores adicionais de raça e orientação sexual.

As estatísticas são brutais:

  • 94% das ameaças de morte têm teor racista;
  • 97% têm conteúdo misógino;
  • 56% incluem LGBTIfobia;
  • 100% das ameaças de estupro incluem misoginia, 82% têm LGBTIfobia e 71% têm racismo.

Em quase um quarto dos casos (23%), as ameaças se estendem a familiares e amigos, evidenciando o uso da “desestabilização afetiva e emocional” como estratégia para minar a permanência dessas mulheres na vida pública.


Intimidação e violência

O dado mais simbólico e perturbador da pesquisa é o uso do nome de Marielle Franco como instrumento de intimidação: 63% das ameaças de morte mencionam diretamente o assassinato da vereadora. A pesquisa descreve isso como uma “advertência brutal dirigida a outras mulheres negras e LBTs que ousam ocupar o espaço político”.

A impunidade do crime, aponta o relatório, opera como um poder simbólico e pedagógico de medo:

“Afirma qual corpo e de que maneira esse corpo poderá estar presente na política.”

Essa estratégia converte a memória de Marielle — um símbolo de luta e resistência — em ameaça, invertendo seu legado em arma para o terror político. A ameaça, nesse caso, é também uma mensagem.


A internet como campo social e mecanismo de exclusão

O estudo propõe uma leitura da internet não apenas como um meio de comunicação, mas como campo social estruturado, com disputas simbólicas por poder, legitimidade e visibilidade. Guiadas por algoritmos e lógica de engajamento, as plataformas digitais acabam por reproduzir as violências do mundo físico — com agravantes de anonimato, impunidade e monetização do ódio.

Segundo o relatório, a internet passou a ser usada “como instrumento de exclusão, controle e violência política”, com práticas como:

  • Doxxing (exposição de dados sensíveis);
  • Difusão de fake news e deepfakes;
  • Discurso de ódio;
  • Assédio digital;
  • Invasão de redes;
  • Violência simbólica e discursiva.

“A presença dessas mulheres desafia a tradição ‘inventada’ da política institucional brasileira — branca, masculina, cisheterossexual, elitista e, por isso, são punidas com violência”, escreve Aron Giovanni.


O que revela a sistematização de 77 casos

A pesquisa não se limita a estatísticas. A análise dos 77 casos tem como foco entender padrões, recorrência e intensidade da violência. Para isso, foram cruzadas variáveis de perfil (raça, identidade, partido, cargo, território) com variáveis de ataque (tipo, teor discriminatório, plataforma).

Importante destacar que não foram contabilizadas as vítimas individualmente, mas sim os episódios de violência. Uma mesma mulher foi alvo de múltiplos ataques combinando ameaças de morte, exposição de dados e assédio digital, por exemplo. Isso revela a repetição como método e a intensidade como estratégia.


A urgência de reagir: para além da denúncia

O Instituto Marielle Franco atua desde 2019 no acompanhamento de casos de VPGR, com prioridade para a proteção e permanência política de mulheres negras, LGBTQIA+, periféricas e defensoras de direitos humanos. O relatório aponta a necessidade de enfrentamento estrutural, com propostas concretas:

  • Protocolos de proteção específicos;
  • Responsabilização de plataformas digitais;
  • Garantia dos direitos políticos plenos;
  • Políticas públicas de prevenção.

“A ocupação política, para essas mulheres, não é apenas um ato de cidadania, mas um ato de resistência contínua a uma estrutura que insiste em eliminá-las”, conclui Luyara Franco.


Para que a memória seja semente, não ameaça

O lançamento do relatório marca um momento importante de enfrentamento institucional da violência política digital. Mas também é, sobretudo, um gesto político de denúncia coletiva e resistência.

Transformar o luto em luta, como Marielle já inspirava em vida, é o desafio ético e político que este relatório impõe. Que a memória de Marielle, tão invocada como ameaça, retorne ao seu lugar de origem: o de esperança e transformação.

Confira a íntegra do relatório

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