Sob articulação de parlamentares bolsonaristas e apoio do governador carioca de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), golpistas tentam emplacar uma anistia aos crimes cometidos durante 2022 e 2023. Existe, inclusive, um texto do partido de Bolsonaro (PL) com uma proposta de anistia. Da forma como está escrito, além de inocentar o ex-presidente, a matéria já isenta de punição golpes futuros, além de perdoar crimes como organização criminosa, o que beneficiaria grupos como o PCC e outras facções. Juristas argumentam que a tentativa é absolutamente inconstitucional. Entenda na TVT News.
O projeto dos bolsonaristas é tão radical que quer isentar de punição “todos que vierem a ser investigados”. Ao elencar os crimes, o projeto de anistia, de certa forma, confessa todos os crimes cometidos. Para especialistas, muito mais do que anistiar condenados (algo improvável pela inconstitucionalidade do projeto), a ideia é provocar conflito, acender um cenário de caos institucional no país.

Texto indecente
O texto teria sido redigido pelo deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ). Logo em seu artigo 1º, ele diz “Fica concedida anistia a todos aqueles que, no período compreendido entre 14 de março de 2019 e a data de entrada em vigor desta Lei, tenham sido ou estejam sendo ou, ainda, eventualmente, possam vir a ser investigados, processados ou condenados
em razão de condutas”. Então, ele descreve uma lista de crimes que seriam perdoados de hoje em diante.
Alguns dos crimes: dano contra o patrimônio da União, deterioração de patrimônio tombado, incitação ao crime, apologia de crime ou criminoso, organização criminosa, associação criminosa ou constituição de milícia privada; crimes contra o Estado Democrático de Direito.

Interpretação da Constituição
É fato aceito pela doutrina jurídica e pacificado pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF) que a Constituição deve ser interpretada como um texto completo. Trata-se de um princípio de interpretação do bloco constitucional. Assim, as leis que ali estão escritas, devem ser harmônicas entre si, devem fazer sentido como um todo. Assim, a questão da anistia carece de uma interpretação extensiva e conjugada de diferentes artigos para a compreensão da possibilidade ou não de anistia para cada crime.
A Constituição estabelece limites para o alcance da anistia. O artigo 5º, inciso XLIV, também considera inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados contra a ordem constitucional e o Estado Democrático, elemento que se tornou central na análise jurídica dos atos de janeiro.

A anistia é prerrogativa do Legislativo. Contudo, alguns crimes são, por opção do legislador, insucessíveis de graça, anistia ou fiança. Pela letra da lei, são eles: tortura, tráfico, terrorismo e os crimes hediondos. Contudo, também existem cláusulas pétreas, ou seja, que não podem ser alteradas na Constituição.
Entre elas, os que garantem direitos individuais ou que defendem o Estado Democrático de Direito e a soberania do voto popular. E, de acordo com o artigo 60, parágrafo 4º, não pode ser alvo de emenda ou alteração legislativa qualquer alteração. Assim, ações que ferem a democracia em si, não devem ser passíveis de anistia.
Art. 60. A Constituição poderá ser emendada mediante proposta:
§ 4º Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:
I – a forma federativa de Estado;
II – o voto direto, secreto, universal e periódico;
III – a separação dos Poderes;
IV – os direitos e garantias individuais.
Anistia inconstitucional
Um dos maiores juristas do Brasil, Lenio Streck, ajuda a entender as razões para a anistia ser inconstitucional. “E onde está escrito democracia e Estado Democrático de Direito, leia-se “ninguém pode usar a democracia contra ela mesma”. Nenhuma Constituição admitirá perdão (indulto, anistia) para quem atenta contra o Estado democrático. Tudo porque a Constituição não é um oxímoro”, afirma em texto para o Conjur.
“É totalmente inconstitucional qualquer tipo de anistia para quem tentou acabar com a democracia. Não se pode pensar que uma democracia faz haraquiri (suicídio). Em nome dela — da democracia — não pode ser permitido, sob qualquer hipótese, o perdão ao que tentaram com ela acabar. O Brasil pagaria um mico para o mundo”, completa.
Portanto, o Streck explica que não é possível uma interpretação pura do texto constitucional. Como ele argumenta, quem assim o faz, reprovaria em prova do terceiro semestre do curso de Direito. “Um exemplo singelo derruba os argumentos textualistas. Se uma lei proíbe cães no parque, um textualista — que defende a constitucionalidade de uma lei de anistia para os golpistas — por certo responderia que “a lei não proíbe ursos”. Logo, são permitidos. Pior ainda: por certo o textualista dirá que, proibidos cães, o cão-guia do cego está impedido de transitar no parque. Esta é a melhor maneira de se saber o conceito de “interpretação textualista”.
Caso Daniel Silveira
E já há precedente recente no Brasil. Um julgado da Suprema Corte impediu que Bolsonaro, na época presidente, concedesse anistia a Daniel Silveira, golpista bolsonarista preso em 2021. “Não era proibido expressamente pela Constituição que o presidente Bolsonaro concedesse indulto. Mas o STF, baseado em forte doutrina e na interpretação sistemática, entendeu que o ato contrariou a Constituição. Percebem?”, aponta Streck

“Nesse precedente (ADPF 964), já se vê a pista da inconstitucionalidade de eventual lei anistiando golpistas. Há uma passagem em que se lê: “Indulto que pretende atentar, insuflar e incentivar a desobediência a decisões do Poder Judiciário é indulto atentatório a uma cláusula pétrea prevista no artigo 60 da CF”, completa o pensador do Direito.
Juristas sobre a anistia
A TVT ouviu diferentes visões de advogados sobre o tema. Confira a seguir o que eles argumentam a respeito da constitucionalidade da anistia.
Para Julia Cassab, criminalista do escritório João Victor Abreu Advogados, a proposta esbarra em cláusulas pétreas da Constituição. “A anistia aos participantes e articuladores dos atos antidemocráticos ocorridos em 8 de janeiro de 2023 enfrenta barreiras constitucionais relevantes”, disse.
“Embora o art. 5º, XLIV, da Constituição Federal não traga, de forma expressa, a vedação à anistia nesses casos, uma interpretação sistemática e hierarquizada — em consonância com os incisos XLII e XLIV, com as cláusulas pétreas do art. 60, §4º, e à luz de princípios estruturantes como o da proporcionalidade — conduz à conclusão de que tais delitos não podem ser objeto de perdão legislativo”, completa Julia.

Por fim, ela também entra em sintonia com a visão hermenêutica de uma interpretação sistemática do bloco constitucional. “O texto constitucional, ao prever tratamento rigoroso para condutas que atentam contra a dignidade humana e a ordem democrática, não deixa espaço para soluções que impliquem esquecimento ou impunidade.
Qualquer tentativa de conceder anistia nessas hipóteses afronta o núcleo intangível da Constituição e vulnera as bases do Estado Democrático de Direito.
Ou seja, ainda que o Congresso aprove uma lei com esse teor, caberá ao Supremo Tribunal Federal avaliar sua compatibilidade com a Constituição, e há precedentes e manifestações de ministros que indicam tendência pela inconstitucionalidade de medidas dessa natureza.”
Visão distinta
Em sentido oposto, o advogado criminal e professor da PUC-SP Leonardo Massud argumenta que a Constituição não impede, de forma explícita, o Congresso de legislar sobre anistia em casos como os de 8 de janeiro:
“Sim, uma eventual lei de anistia pode atingir tais condenações. O Congresso tem a atribuição constitucional para anistiar crimes. O legislador constituinte só lhe vetou essa possibilidade para a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos (art. 5º, XLIII)”, disse.
Contudo, o advogado avalia que seria trágico para o país no sentido político e institucional. “Penso que não há fundamento para o STF declarar, posteriormente, a inconstitucionalidade de uma lei de anistia restringindo o alcance de um benefício que o próprio texto constitucional não limitou. Isso não quer dizer que, do ponto de vista político e institucional, uma tal lei de anistia não seja desastrosa.”

Já o advogado criminalista Antonio Gonçalves, com vasta formação em direitos humanos, pondera que uma eventual anistia não apaga o crime, mas apenas os efeitos penais:
“Os crimes não são alcançados por eventual lei de anistia, o que pode ser anistiado são as penas que podem ser diminuídas ou até anistiadas, isto é, deixam de produzir efeitos. Dependendo dos efeitos e do alcance da norma pode se decidir por restaurar os efeitos dos antecedentes penais, apesar de não ser a conduta comum em casos como esse.”
Pior Congresso da história
O advogado Antônio Carlos Morad, titular do escritório Morad Advocacia Empresarial, critica qualquer tentativa de perdoar os golpistas. “Nosso Congresso Nacional atual é o pior que já existiu no Brasil. Indivíduos com um mesmo e comum senso, o de destruir nosso status de paz social e organização. Anistia, perdão ou seja lá o que for será rechaçado pela nossa Constituição através do Supremo e principalmente o povo brasileiro. Essas hipóteses são um puro marketing elaborado por oportunistas querendo garantir a pequena massa de eleitores do ex-presidente próximo de seu desfecho final.”
📜 ESQUEMA LEGAL SOBRE A ANISTIA DOS ATOS DE 8 DE JANEIRO
❌ CRIMES QUE NÃO PODEM SER ANISTIADOS (Art. 5º, XLIII da CF):
- Tortura
- Tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins
- Terrorismo
- Crimes definidos como hediondos
🔒 DISPOSITIVO QUE VEDA ANISTIA A GOLPISTAS (Art. 5º, XLIV da CF):
“Constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático”, além de interpretação sistemática do bloco constitucional através de uma hermenêutica da função da lei, fora de uma leitura rasa textualista.
🛑 CLÁUSULAS PÉTREAS (Art. 60, §4º da CF):
- Proíbem emendas que violem:
- A forma federativa de Estado
- O voto direto, secreto, universal e periódico
- A separação dos Poderes
- Os direitos e garantias individuais
⚖️ COMPETÊNCIA DO STF:
- Julgar a constitucionalidade de leis aprovadas pelo Congresso
- Avaliar a legalidade de indultos presidenciais
- Interpretar a Carta Magna conforme os princípios fundamentais do Estado Democrático de Direito
📌 PRECEDENTE JURISPRUDENCIAL:
- Indulto a Daniel Silveira foi anulado
- Supremo afirmou que o perdão não pode servir a interesses políticos pessoais
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