Câmara contraria leis e a Justiça para manter mandato de Zambelli

Bolsonarismo no Congresso blinda bandidos. Entenda porque a manutenção do mandato de Zambelli desafia a Constituição, o STF e leis federais
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Zambelli é condenada e foragida da Justiça. Mas mantém mandato por decisão do Congresso que contraria a Justiça. Foto: Lula Marques/Agência Brasil

Em um movimento que escancara a ausência de compromisso do Congresso Nacional com o Estado de Direito, a Câmara dos Deputados rejeitou, nesta quarta-feira (10), a cassação da bolsonarista Carla Zambelli (PL-SP), mesmo após sua condenação definitiva a dez anos de prisão por envolvimento na invasão hacker aos sistemas do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Entenda na TVT News.

A decisão ignora frontalmente a Constituição Federal, o Código Penal e o entendimento consolidado do STF sobre condenação com trânsito em julgado.

Foragida desde a condenação, Zambelli foi presa na Itália em julho, após atravessar três países em tentativa de escapar da Justiça brasileira. Ainda detida em uma penitenciária próxima a Roma e à espera de extradição, ela segue, paradoxalmente, com mandato ativo na Câmara.

Previsão na Constituição


Art. 15. É vedada a cassação de direitos políticos, cuja perda ou suspensão só se dará nos casos de:

III – condenação criminal transitada em julgado, enquanto durarem seus efeitos;


Previsão no Código Penal


  Art. 92 – São também efeitos da condenação:     

       I – a perda de cargo, função pública ou mandato eletivo:      

        a) quando aplicada pena privativa de liberdade por tempo igual ou superior a um ano, nos crimes praticados com abuso de poder ou violação de dever para com a Administração Pública;     

        b) quando for aplicada pena privativa de liberdade por tempo superior a 4 (quatro) anos nos demais casos.  


Votação que ignora a Constituição

Por 227 votos a 170, com 10 abstenções, o plenário barrou a cassação, deixando de atingir o mínimo constitucional de 257 votos para perda do mandato. A decisão confronta a orientação da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), que havia aprovado, por 32 votos a 2, o relatório reconhecendo a impossibilidade jurídica e material de Zambelli continuar exercendo o cargo enquanto cumpre pena em regime fechado.

Além disso, contraria o que determina o artigo 15, inciso III, da Constituição Federal, que estabelece a suspensão de direitos políticos em razão de condenação criminal transitada em julgado, enquanto durarem seus efeitos. A legislação complementar é explícita: o artigo 92, inciso I, alínea “b”, do Código Penal determina como efeito secundário da condenação “a perda de cargo, função pública ou mandato eletivo”, quando o crime é praticado com abuso de poder ou violação de dever para com a Administração Pública.

A Lei da Ficha Limpa (Lei Complementar nº 135/2010) reforça essa lógica ao prever a inelegibilidade de condenados em decisão definitiva. E, no caso específico de parlamentares, o artigo 55 da Constituição estabelece ainda que a perda do mandato ocorre quando o deputado “sofrer condenação criminal em sentença transitada em julgado”. Embora o dispositivo preveja deliberação da Casa Legislativa, o STF já consolidou jurisprudência de que a perda decorre diretamente da condenação quando inviabilizado o exercício do mandato — como ocorre no regime fechado.

Foi com base nesses dispositivos que a Primeira Turma do STF determinou a cassação automática, entendendo que a parlamentar, presa e impedida de comparecer às sessões, incorre simultaneamente nos fundamentos constitucionais de perda do mandato por condenação e por excesso de faltas.

Câmara desafia o Supremo

A decisão do plenário, liderada pelo presidente da Casa, Hugo Motta (Republicanos-PB), aposta numa interpretação “própria” da Constituição, segundo a qual o Legislativo teria sempre a “última palavra” sobre cassações, ainda que se trate de condenação definitiva e de impossibilidade física do exercício do mandato. É, na prática, a afirmação de um poder contramajoritário sobre decisões judiciais vinculantes.

O líder do PT, Lindbergh Farias (RJ), anunciou que o partido recorrerá ao Supremo. “A decisão do STF é clara. Este processo não deveria ter passado pela CCJ e muito menos ter vindo ao plenário”, afirmou.

A deputada Lídice da Mata (PSB-BA) destacou que, independentemente da manobra regimental, o desfecho é inevitável: “Na prática, ela já está cassada. O regime fechado impossibilita qualquer exercício de mandato e levará automaticamente à perda por faltas.”

Bolsonarismo blinda bandidos

A preservação do mandato de Zambelli também expôs o corporativismo da Câmara, especialmente entre parlamentares da extrema direita, muitos deles investigados em inquéritos criminais. Nos bastidores, avaliou-se que cassar Zambelli abriria precedente contra deputados com exposição jurídica semelhante.

Na sessão, o advogado da deputada, Fabio Pagnozzi, afirmou que Zambelli renunciaria ao mandato após “ser vitoriosa” no plenário, argumento que não altera a gravidade jurídica da situação. O defensor adotou ainda o discurso bolsonarista tradicional, alegando falta de provas e “perseguição judicial”.

Condenação, fuga e extradição de Zambelli

Após sua condenação definitiva, Zambelli deixou o Brasil clandestinamente, tendo passado por Argentina e Estados Unidos antes de desembarcar na Itália. Foi localizada e presa em julho. A Justiça italiana considera seu risco de fuga elevado, o que contribuiu para sua manutenção em regime fechado.

Seu processo de extradição enfrenta sucessivos adiamentos, após a defesa apresentar um extenso novo conjunto de documentos, estratégia que pode prolongar a tramitação. A Corte de Apelações de Roma marcou uma nova audiência para 18 de dezembro.

Enquanto isso, o governo brasileiro aguarda a decisão que determinará se Zambelli retornará ao país para iniciar o cumprimento da pena de dez anos.

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