O PL da Dosimetria, aprovado na Câmara, tenta unificar, para fins penais, a tentativa de golpe de Estado (art. 359-M) e a abolição violenta do Estado Democrático de Direito (art. 359-L). Contudo, na doutrina jurídica, não se trata do mesmo crime, não têm o mesmo objeto jurídico, nem protegem as mesmas instituições. Entenda na TVT News.
A tentativa de “fundir” as duas figuras seria, para juristas, tão arbitrária quanto legislar dizendo que roubo e furto são a mesma coisa porque ambos envolvem subtração de bens (mas um tem violência ou grave ameaça, no caso do roubo, o furto não).
Assim como o roubo inclui violência e o furto não, cada uma dessas figuras do Título XII do Código Penal possui estrutura própria, elementos distintos e, sobretudo, bens jurídicos diferentes. Reduzir ambos a um único tipo penal ignora a técnica legislativa, enfraquece a proteção democrática e cria um precedente perigoso de relativização de crimes contra o Estado de Direito.
Crimes distintos, finalidades distintas
Inseridos pela Lei nº 14.197/2021, os artigos 359-L e 359-M foram concebidos como tipos autônomos. A razão é clara: cada um protege dimensões diferentes da ordem democrática.
Tentativa de golpe de Estado (art. 359-M) tutela a soberania popular. É o crime voltado à proteção da escolha feita nas urnas. Consiste em tentar depor um governo legitimamente eleito, por violência ou grave ameaça.
Abolição violenta do Estado Democrático de Direito (art. 359-L) tutela a ordem constitucional, ou seja, o funcionamento dos poderes e instituições estabelecidos pela Constituição de 1988, STF, TSE, Congresso, Presidência e demais órgãos essenciais.
Tentar derrubar o presidente eleito não é a mesma coisa que tentar desativar, restringir ou sabotar o funcionamento dos poderes constitucionais. Da mesma forma, atacar o STF ou o Congresso não é, automaticamente, um ato executório de deposição do chefe do Executivo. São condutas que podem ocorrer juntas, mas não são um único crime.
O que dizem os especialistas
Para o advogado Antônio Carlos Morad, a distinção é conceitual e incontornável: cada delito corresponde a um “alvo” diferente.
“Pensemos num golpe contra um governo despótico. Esse golpe seria para restabelecer uma democracia. Portanto temos duas figuras jurídicas distintas. O inverso seria a destruição de uma democracia, exemplo, a nossa.”
O criminalista Antonio Gonçalves reforça que se trata de duas figuras penais separadas, cada qual com “dosimetrias e análises próprias”, e cuja aplicação conjunta depende necessariamente da autonomia das condutas. A tentativa de uni-las legislativamente “pelo contexto” contraria o modo como o Direito Penal organiza a proteção do Estado Democrático.
O professor Leonardo Massud, da PUC-SP, aprofunda o ponto: o art. 359-L pode atuar como crime-meio, enquanto o 359-M funcionaria como crime-fim, mas isso depende do caso concreto. A relação não é automática nem simétrica. Ele destaca que, nos fatos concretos em julgamento, há dois momentos distintos (antes e depois da posse), o que evidencia que nem sempre um crime absorve o outro.
“Em tese, é até possível ambas as imputações, mas na medida em que a própria narrativa da denúncia descreve uma como caminho para a outra, fica difícil sustentar a condenação por ambos os crimes”, afirma Massud. Ainda assim, essa é uma avaliação caso a caso; jamais uma regra geral que justifique unificação legislativa ampla.
A criminalista Julia Cassab reforça que os dois crimes têm bens jurídicos tutelados diferentes, o que impede a fusão dos tipos:
- Golpe de Estado (359-M): protege a soberania popular e o governo eleito.
- Abolição violenta (359-L): protege a ordem constitucional como sistema.
Cassab explica ainda que, dependendo da intenção e da sequência dos atos, pode ocorrer:
- consunção (um absorve o outro), ou
- concurso material (penas somadas).
Essa decisão é técnica, depende da análise do caso concreto e é feita pelo julgador, e não pode ser substituída por uma regra legal que, de antemão, determine a fusão de crimes diferentes.
A tentativa de unificar 359-L e 359-M produz distorção. A consequência prática seria esvaziar a resposta penal a condutas que atacam partes distintas do arcabouço democrático: o governo eleito e as instituições constitucionais.
O risco do PL da Dosimetria
Ao permitir que um crime absorva o outro de forma obrigatória e generalizada, o Legislativo criaria três problemas graves:
Redução artificial da responsabilização: Atos que atentam simultaneamente contra o governo eleito e contra o funcionamento dos poderes passariam a ter punição limitada ao crime “mais grave”, mesmo quando, tecnicamente, se tratam de agressões distintas.
Banalização da tutela do Estado Democrático: A Constituição de 1988 dedicou-se a criar múltiplas barreiras contra rupturas institucionais. A unificação esvazia essa arquitetura protetiva.
Precedente perigoso: Abrir mão da distinção entre bens jurídicos fundamentais cria margem para legislações ad hoc que enfraquecem o próprio sistema que a lei deveria proteger.
