Em mais um cerco político aos direitos dos povos originários indígenas, o Senado aprovou nesta terça-feira (9) a Proposta de Emenda Constitucional (PEC 48) que insere o “marco temporal” das terras indígenas na Constituição. Entenda na TVT News.
A medida, que agora segue para a Câmara dos Deputados, restabelece a tese segundo a qual apenas podem ser demarcadas terras que estivessem sob posse indígena em 5 de outubro de 1988, contrariando decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) e o próprio texto constitucional.
A votação expôs, novamente, a força de uma maioria parlamentar alinhada ao agronegócio e à exploração econômica dos territórios tradicionais, em detrimento dos direitos originários reconhecidos há mais de três décadas. O texto aprovado amplia restrições, prevê indenizações prévias a ocupantes não indígenas e cria novas barreiras administrativas, tornando o processo de demarcação ainda mais lento e vulnerável à judicialização, de acordo com defensores dos povos indígenas.
O autor da proposta, senador Doutor Iran, afirmou que a PEC busca “preservar a paz” e garantir “segurança jurídica” para agricultores e investidores. Em seu discurso, defendeu que a fixação de 1988 como referência seria suficiente para “proteger” tanto populações indígenas quanto ocupantes rurais. A narrativa, entretanto, ignora décadas de expulsões forçadas, violências e remoções que impediram inúmeros povos de permanecerem em seus territórios antes da Constituição.
No plenário, a crítica mais contundente partiu do líder do governo, senador Jacques Wagner, que classificou a proposta como incoerente e incapaz de resolver os conflitos fundiários. “Os indígenas só podem ter suas terras reconhecidas se comprovarem que estavam nelas em 1988. Os outros podem provar que chegaram até 2019 e regularizar. É completamente desproporcional e não pacifica nada”, afirmou.
Marco temporal: Congresso contra a Constituição
A aprovação da PEC ocorre em ambiente político inflamado. Em 2023, o STF declarou inconstitucional a tese do marco temporal. Em reação, o Congresso aprovou a Lei 14.701, restabelecendo a tese. Lula vetou o texto, mas os parlamentares derrubaram o veto. Desde então, o país vive uma colisão institucional: uma lei contrária à Constituição e à decisão da Suprema Corte permanece em vigor há dois anos, sem suspensão imediata por parte do STF — omissão criticada por diversos juristas e organizações indígenas.
Agora, o Supremo volta ao centro do debate. Quatro ações que contestam a Lei 14.701 começam a ser julgadas nesta quarta-feira. A sessão terá a leitura do relatório do ministro Gilmar Mendes e sustentações orais da Procuradoria-Geral da República e de entidades envolvidas no processo. A decisão pode reafirmar o entendimento de inconstitucionalidade da tese, mas o gesto do Senado, às vésperas do julgamento, foi interpretado como tentativa explícita de pressionar o Judiciário.
Entidades indigenistas, como o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), classificam a PEC como um ato de violência institucional e de retaliação ao STF. O Cimi afirma que o Senado reproduz a estratégia de 2023, quando a Câmara acelerou o Projeto de Lei do marco temporal para interferir no julgamento da Corte. Agora, o presidente do Senado, Davi Alcolumbre, pautou a PEC sem que o texto sequer passasse pela Comissão de Constituição e Justiça.
“O Cimi reafirma seu apoio irrestrito aos povos indígenas, na defesa de seus direitos e pela inconstitucionalidade integral da Lei 14.701. Confiamos que o STF cumprirá sua missão institucional e preservará os direitos fundamentais com a mesma firmeza com que protegeu a democracia e impediu a consolidação de um regime autoritário.”
Conflitos no campo aumentam
Desde a entrada em vigor da Lei 14.701, o Brasil vive cenário de insegurança jurídica inverso ao prometido pelos defensores do marco temporal. Demarcações tornaram-se excepcionalmente lentas e burocratizadas, criminalizadas sob a narrativa de “excesso de direitos”. Servidores federais têm relatado ameaças constantes em trabalho de campo, enquanto invasores são tratados como “ocupantes regulares” em áreas griladas.
A violência nos territórios indígenas também se intensificou. Lideranças vêm sendo assassinadas, rios contaminados, florestas destruídas e aldeias pressionadas por pistoleiros, garimpo e empreendimentos ilegais. O marco temporal, segundo entidades indígenas, legitima a ofensiva econômica sobre territórios tradicionais ao permitir a exploração por terceiros — medida que atende diretamente aos interesses do agronegócio, da mineração e de grupos políticos que tratam a terra como mercadoria.
